quarta-feira, outubro 25, 2006

CRIADOR DE MUNDOS

Marcus Ottoni


"Bosquinho conversava, soltava as suas fantasias, virava as doses devagar e sempre. Dizia-se um diarista."
Nei Leandro de Castro

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De 4 a 25 de novembro, o Pratodomundo

Iguais

Na feira todos se encontravam.
Era o professor de matemática, o carteiro,
O vigia do colégio, o colega de sala
E até a Madre Superiora...
Todos com sandália de dedo,
Todos eram iguais na feira do Alecrim...

Mas por que eu não te vi?
na feira do alecrim...

Paula
Comentário deixado em antiga postagem deste blog


CAMALEÃO

Circulo intensamente
Procuro perguntas
Ignoro respostas

Duvido permanentemente
Do bem que ao mal purifique
Do consciente que se justifique

Compartilho humildemente
Possessões do acaso
Delas não faço caso

Sobrevivo bravamente
Minha cor transparece
De acordo à minha dor

Deborah Milgram



O toque das palavras

Esses dias ouvi que não se pode conhecer uma pessoa, única e exclusivamente através de seus textos, que é necessário um contato mais íntimo, pessoal. Concordo, pois que o artista da palavra recria o mundo, inventa tanto e tão bem que tudo parece ser verdade. É a tal da verossimilhança, aquilo que se diz em Teoria Literária que um texto deve conter para que convença como real dentro do universo imaginado.

Por isso diz-se que o artista é um criador de mundos. Fernando Pessoa não deixava dúvidas sobre o seu fazer literário: “o poeta é um fingidor/finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/a dor que deveras sente”. No entanto, não raro, os autores deixam fortes marcas de personalidade nas suas criações que não são outra coisa senão resultados de sua bagagem de mundo. O resultado da sua visão que - multifacetada -, às vezes, assume os olhares de seus personagens.

Afora isso, quero lembrar aqui sobre a palavra como objeto intencional. Daquela cuja intenção do autor é mostrar-se, realmente, enquanto pessoa que sente alguma coisa por outra, a quem se dirige. Aí ela se transforma em poderosa arma de envolvimento. Nem a palavra dita ao pé do ouvido, às vezes, surte tanto efeito, quanto essa. Quando lida, convoca a reação dos sentidos. Ouve-se a palavra, sente-se o cheiro, o toque, o gosto, visualiza-se o que está acontecendo e tudo isso se transforma num turbilhão de sensações.

Poderosa é a palavra escrita. E quando digo isso me vem à mente a fala de uma personagem do filme O carteiro e o poeta – a tia de Beatriz -, que preocupada com os bilhetes que a sobrinha estava recebendo do carteiro, disse ao padre com quem dividia a sua preocupação: “Quando um homem toca uma mulher com palavras, não demora e a tocará com as mãos”.

E foi assim no filme, através dos poemas de Neruda que o carteiro conquistou o amor da moça. Como uma coisa puxa a outra, lembrei do clássico Cyrano de Bergerac e as cartas à sua Roxane, escritas por encomenda de um rapaz que não sabia da sua paixão pela bela jovem. Escreveu tanto e tão bem Cyrano (a personificação do homem feio), sobre o seu amor sincero, que a moça apaixonou-se por aquele que a ela escrevia e surgiu daí uma das mais lindas histórias de amor.

Outro filme do qual me lembro sobre é Nunca te vi, sempre te amei, que conta a história de um relacionamento entre uma escritora colecionadora de livros raros e o dono de uma livraria, por vinte anos, trocando apenas cartas. Desse contato indireto - mas nem por isso menos íntimo -, nasce uma cumplicidade e uma forte ligação entre os dois, transbordante de emoção e pra lá de fascinante.

O toque das palavras. Penso que se um poema ignorado, por exemplo, na sua intenção, tivesse sentimento, talvez sentisse como Quintana tão bem o descreveu em O poema: “Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema./Triste./ Solitário./ Único./ Ferido de mortal beleza.”

Palavras que têm o poder de tocar. Sejam elas com endereço certo ou não, necessitam de um receptor para que se realizem. Por isso Carlos Drummond de Andrade já dizia: “Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sobre a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível que lhe deres: Trouxeste a chave?”

Neide de Camargo Dorneles


Bosco e Blecaute

Saí de Natal em 1968. Por isso, a minha convivência com Bosco Lopes, o nosso querido Bosquinho, foi interrompida e só retomada, em curtas temporadas, nas vezes em que eu visitava Natal dos meus amores. Além da afinidade na poesia, tínhamos um ponto em comum: o Bar do Nazi e sua maravilhosa meladinha, no coração do Beco da Lama. Bosco era um dos primeiros a chegar, tomar lugar no balcão do velho bodegueiro, pedir a abrideira e desenvolver a sua tese preferida: a de que poesia e amizade se interlaçam, principalmente se houver uma dose de bebida para celebrar os encontros afetivos. Bosquinho conversava, soltava as suas fantasias, virava as doses devagar e sempre. Dizia-se um diarista, ou seja, aquele que bebe todos os dias da semana, numa rígida disciplina.

Mesmo diarista, com compromisso assumido com o copo, Bosco Lopes encontrava tempo para fazer poesia. Poderia ter escrito mais. Sua produção poética foi prejudicada pelo seu amoroso encontro com a bebida. Mas o pouco que ele deixou é de bom nível. No seu livro Corpo de Pedra pode-se ver a qualidade dos versos que o poeta publicou em vida. Pena que não tenha escrito mais. Mas o que escreveu tem momentos assim: “nos corredores das casas mortas/ nos castelos sem portas/ nos contos de fadas/ nas lutas de espadas/ não me esqueças/ e sobretudo/ não me esqueças.” E assim: “Cynthia a cintilar/ E a brincar com as conchas do mar.” E assim: “Recife/ dos braços dos rios/ abertos para o mar.”

São muitos versos como estes, às vezes tangidos pela amorosidade, às vezes pela solidão. Mas a poesia está sempre presente, com aquela ternura pela vida e pelo ser humano que acompanhava Bosco Lopes em seus passos de andarilho, fraterno e quixotesco andarilho.

Blecaute tinha crises de loucura, mas também era acometido por surtos de poesia. Às vezes ficava difícil manter uma conversa com ele, porque o poeta marginalizado adorava o monólogo, o solilóquio, o discurso sem pausa.

Nos anos 80, num fim de tarde, eu estava meio escondido num bar, lendo o Jornal do Brasil, fazendo uma horinha para voltar para casa. Blecaute chegou, tomou posse de uma cadeira e disparou a falar, a me mostrar poemas inéditos. Quando me viu bebendo uísque, disse: “Não gosto de uísque. Segundo o grande Castilho, uísque tem gosto de remédio, de Atroveran, mas vou beber com você, por solidariedade.” Pediu uísque, pediu tira-gosto de filé, bebeu e comeu bem depressa, pediu mais filé. Nisso, surge um menino vendendo drops e confeitos.

Blecaute olhou para o pequeno vendedor e perguntou: “Gosta de filé?” O menino arregalou os olhos e disse que sim. “Pode levar, é seu” – disse Blecaute, passando-lhe o prato quase intocado. E, virando-se para mim, completou: “Sabe por que eu faço isso? Porque na minha infância eu nunca comi filé.”

Vários uísques depois, quando veio a conta, ele disse: “Pague você porque eu não tenho um tostão furado.” Nesse dia Blecaute deixou comigo um poema que ele nunca publicou, como se fizesse boicote a si mesmo. Vejam: “Eu sou o escuro dos meus sonhos mal-vestidos, / sou o clarão engolido pelas trevas.”

Nei Leandro de Castro

por Alma do Beco | 4:30 AM | | Ou aqui: 0




segunda-feira, outubro 23, 2006

POETA MATUTO É

Marcus Ottoni


"Tem coleguinha se queixando do excesso de debate no segundo turno da eleição presidencial."

Ricardo Noblat
















SÊ POETA MATUTO É...


Sê poeta, lá no mato,
eu lhe juro, meu irmão,
é, de todas ais manêra,
distribuí emoção.
Digo mais, gente querida:
É in tudo, nessa vida,
arranjá inspiração.

Na fruita da quixabêra,
no canto da jurití,
no abôio do vaquêro,
no andá do jabutí.
No acorde da viola,
na professôrinha da iscola,
no doce de burití.

No quilaro do luá,
numa noite iscura, istrêlada,
no amiudá duis galo,
no orváio da madrugada.
No forró de chão batido,
num papagaio inxirido,
na sombra de uma latada.

Numa muié apaixonada,
numa cabôca facêra,
no seu oiá séivéigonho,
no pingo de uma gotêra.
No suó de um bom cavalo,
num chucáio sem badalo,
nais briga de fim de fêra.

Numa jumenta no cío,
num jumento garanhão,
numa cuiêta de mío,
numa apanha de fêjão.
No trabáio da partêra,
no tiro de uma ronquêra,
numa véspa de São João.

Na véspa de Santo Antôin,
nais sua adivinhação,
nais faca nais bananêra,
nuis tiro duis fuguetão.
Nais moça in disispêro,
pidindo qui um cumpanhêro,
lhe tire da solidão.

No chêro da panelada,
lá no fogo, na panela,
buchada, sarapaté,
pôico torrado e custela.
No qui sobrava do armôço,
qui p’ruis pôico, é um colosso,
isborrotando a gamela.

No velóro ô “fazê quarto”,
no licô oferecido,
no “café vige” no caco,
no namôro improibido.
Num passaríin na gaiola,
num cego pidindo irmola,
no cuscúis de míi muído.

No baráio da suéca,
na canga do boi de carro,
nais históra do cangaço,
nais lôiça, feita de barro.
No alevantá de uma saia,
no véi no mêi da gandáia,
nuis casá tirando sarro.

Na piúba do cigarro,
nuis baicão quage caindo,
no burro arrochando a burra,
na mulecada assistindo.
Nais inchente duis riacho,
nais caçada à luz de facho,
numa nuvía parindo.

Nais prosa, adispôi da janta,
nuis causo fantasiôso,
no gato maracajá,
no caçadô pabulôso.
No mêdo da cascavé,
nuis avelóis, qui é moté,
no pescadô mintirôso.

Numa peda de amolá,
no facão “rabo de galo”,
no arremedo de nambú,
numa gaitada de istralo.
Na melancia quebrada,
numa apregata apertada,
qui dêxa uis pé chêi de calo.

Na sela véia sem lóro,
na manta, no suadô,
na cía, no peiturá,
no “cardo de corredô”.
No passadiço quebrado,
na beleza do roçado,
na lida do agricutô.

No terrêro bem varrido,
na vacaria a vortá,
no fim do dia, à tardinha,
do céicado p’ru currá.
Na passarada cantando,
no patrão se ispriguiçando,
na cadêra, a apriciá.

No quêjo quente, inrolado,
no gáifo, lá na quejêra.
Na raspa, feito farofa,
incantando a mulequêra.
Na rapadura raspada,
mode adoçá a quaiada,
no bolo de macaxêra.

No carro de boi gemendo,
numa peda armando um quixó,
num fôjo, numa arapuca,
no xiado do mocó.
Numa queima de espíin,
num buneco de aifiníin,
na animação de um forró.

No gimido da sanfona,
na batida do melê,
no triângo, no pandêro,
na alegria e no sofrê.
Na saúde ô na doença,
no credo ô na discrença,
no bem bom ô padicê.

No istrumo do currá,
no avôo do bêja fulô,
no cavá de uma cacimba,
no pôico reprodutô.
Na trepada do guiné,
no mixido da muié,
quando tá fazendo amô.

Na Festa da Padruêra,
nais novena da Igreja,
nais véia tudíin rezando,
lôvado e bendito seja.
Nuis repentista travado,
dando conta do recado,
numa acirrada peleja.

Nais prosa do budeguêro,
na fuzarca duis pinhão,
nais rapariga famosa,
no doido da região.
No canindato a Prefeito,
dizendo sê bom sujeito,
e na fía do patrão.

Na batida do machado,
no manejo da chibanca,
qui séive mode o matuto,
arrancá jurema branca.
No cabra qui num arreda,
furando tanque na peda,
agarrado cum alavanca.

Nais festa, durante o inverno,
no forró a todo instante,
no prantío, no chão muiado,
cujo lucro, Deus garante.
Na sêca, nuis má momento,
na dô e no sufrimento,
do pobre do ritirante.

No galo atráis da galinha,
no cavalo véi sem dente,
na manhincença do dia,
nuis namôro indecente.
No muleque de recado,
numa apartação de gado,
na lua in quarto crescente.

Na fulô da jurema branca,
no inxame de arapuá,
na cangáia do jumento,
no jôgo de caçuá.
Numa galinha poedêra,
na fulóra da caatinguêra,
na águia de palombá.

No garajá de galinha,
no costá de rapadura,
na panela de fêjão,
sem tempêro e sem mistura.
No azêdíin da imbuzada,
numa boa garrafada,
na cachaça boa e pura.

Na pamonha, na canjica,
no xerém, no munguzá,
no quarenta, no cuscúiz,
na farofa de jabá.
Na panela de quaiáda,
na tripa de pôico, assada,
e na safra de juá.

Numa caçada de peba,
numa noite de lua cheia,
no bêbo ao sê rebocado,
do buteco prá cadeia.
Na sêca ô no inverno,
um, paraíso; ôto, inferno,
no gôsto do mé de abêia.

No quêjo assando na brasa,
na farofa de bolão,
na sangria do açude,
na zuada do truvão.
No quilaro do relâmpo,
numa cobra “corre campo”,
se arrastando puro chão.

Nuis véio apusentado,
na pega de boi, no mato,
nuis animá dirnutrido,
cuberto de carrapato.
Na farta mesa da ceia,
no chiquêro dais uvêia,
numa boiada no trato.

Numa ninhada de pinto,
no trabáio do boi manso,
no rio, quando tá cheio,
na correnteza ô remanso.
De in tôda essas coisa boa,
fazê verso e cantá loa,
disso, meu fíi; eu tô canso.

Na gritada do paiaço,
de circo ô de pasturí,
na dança do Boi de Reis,
nais visage e no saci.
Na dança dais pastôrinha,
in “Cumade Fulôsinha”,
nais coisa simpres dalí.

Inda farta munta coisa,
qui nuis tráis inspiração.
Prá fazê verso, poema,
e ispaiá nêsse mundão.
Ao meu netíin e minhais neta,
digo: Isso é sê poeta,
matuto, lá do sertão...

Bob Motta

por Alma do Beco | 9:52 PM | | Ou aqui: 0




domingo, outubro 22, 2006

PRANINGUÉM

Marcus Ottoni


"Se algum ET existir no sistema solar, os cientistas já sabem a sua dieta: compostos de enxofre. Foram achadas bactérias em uma mina profunda sul-africana que vivem há milhões de anos sem contato com a superfície, como se imagina possa ocorrer em outro planeta."

RICARDO BONALUME NETO, da Folha de S.Paulo



ESGRIMA

Gostamos dessa carapuça,
Ela nos atrai nos enlouquece
Nos desafia, nos apetece

Através dessa carapuça
Nos esquivamos, nos atacamos
Nos defendemos, nos empatamos

Vítimas dessa carapuça
Num ágil e sutil movimento
Perfura a nobre espada
No devido exato momento
Touchê!

Deborah Milgram




TUA IMAGE IN DEIZ VERSO MATUTO...


Quem bota o fóco do oiá,
no brío duis zóio teus,
na certa, agradece a Deus,
pru tê o dom de inxéigá.
Se o cabra, de tu, ganhá,
um riso, um oiá fugáiz,
perde o sussêgo e é capaiz,
de se apaixoná, querida,
quem ti vê uma vêiz na vida,
num t'isquecerá, jamais...

Bob Motta



Memória a Nasi já não é mais para todos

O painel retratando Nasi preparando uma meladinha, feito durante o I Pratodomundo, em 2003, pelo artista plástico Franklin Serrão, em festa da SAMBA, a Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências, já não é mais para todos: o jogo do bicho o levou.

Uma grande pintura comercial da Paratodos, empresa que explora o jogo de bicho, tomou lugar da arte que retratava o mais expressivo personagem do Beco da Lama e adjacências.

E sem necessidade: por todo canto, esquina a esquina, existem comerciais iguais, em casas exploradoras do jogo, às vezes, uma vizinha a outra.

O obra de Franklin Serrão, situada em pleno Beco da Lama, Rua Dr. José Ivo, em homenagem àquele que durante mais de 30 anos de labuta diária popularizou a meladinha e manteve viva a boemia que se esvaía na Cidade Alta, bairro que deu origem a cidade do Natal, não existe mais.

Por ironia ou provocação, o mesmo bar, aquele que firmou-se na memória popular como o Bar de Nasi, mesmo sem nunca ter tido um letreiro em sua fachada que dissesse isso, hoje chama-se Bar da Meladinha, usando o produto que Nasi popularizou, como o atrativo principal da casa.

Fica o letreiro da Paratodos. Fica o letreiro do Bar da Meladinha. Vai-se a memória de Nasi. Vai-se mais um dos painéis que artistas confeccionaram gratuitamente para a cidade.

Fica a revolta contra a insensibilidade.
E fica também a certeza de nossa incapacidade social em conter a fúria esmagadora do capital que tudo compra e se firma, humilhando, destruindo, jogando ao nunca mais um pouco do registro que se tentou fazer de uma época.

Eduardo Alexandre



A Manga e o Sal

Na minha infância, quando morava na rua que leva o nome do poeta Segundo Wanderley, no Barro Vermelho, onde ainda hoje habitam os meus pais, uma das minhas maiores realizações era subir na frondosa, centenária e, até então, surpreendentemente produtiva mangueira que ficava no extenso quintal.

Aquela mangueira, com suas belas e rosadas mangas, era o playground da minha infância. No seu topo eu passava tardes e manhãs (à noite, como uma caverna, a árvore era habitada por felizes morcegos), aventurando-me, como num filme de Tarzan, escalando as alturas arriscadas, colhendo e largando os frutos pesados e doces que desabavam por entre as folhas longas e lustrosas e os galhos esverdeados, produzindo um som sibilante peculiar até o barulho retumbante da queda. A queda, que eu mesmo experimentei um dia e que causou um dos maiores sustos que minha mãe já teve na vida: o filho prostrado no chão, de bruços, próximo a um ciscador com as pontas de ferro oxidado viradas para cima. Foi só o susto do baque. Nenhum órgão ou osso avariado. O trauma, no entanto, fez com que eu demorasse a voltar aos galhos daquela árvore.

Essa queda, a primeira forte, símbolo de outras que viriam na minha existência, também experimentou meu irmão mais velho, Jansênio, maior expressão de aventureiro – e eu buscava imitá-lo – que se apresentava na época. Caiu de uma altura maior, mas, como eu, não chegou a quebrar osso, para alívio momentâneo de todos, pois as incursões à nave da mangueira voltavam a se repetir pouco tempo depois.

Certo dia daquela época, esse mesmo irmão, revoltado temporariamente com uma negativa paterna de alguns dinheirinhos, decidiu dar o troco das moedas que não recebeu, preparando a cena: subiu até o ponto mais alto, ali onde os galhos se retorciam – ciosos de não poderem mais crescer – e ameaçava se jogar. Papai, à porta, dizia que iria chamar os bombeiros. Eu ria, incrédulo da cena. Lembro-me que o único efeito doloroso disso tudo foi um grande galo na minha cabeça, realizado pela mão paterna, que, fechada, rápida e certeira, atingiu meu cocuruto na hora em que me esbaldava no riso.

Na mangueira subiu também uma vez o meu irmão Janair que logrou realizar um dos maiores dramas da minha infância, quando, aos berros que se ouviam em quase todo o Barro Vermelho – da Jaguarari até a Olinto Meira, da Segundo Wanderley até a Meira e Sá – se desesperava, afirmando que as abelhas estavam o atacando. A cena era patética e assustadora. Hoje, graças a Deus, somente risível. Meu irmão, longilíneo como sempre foi, preparava-se para saltar, de pé sobre um galho forte. Um dos outros manos estava sob a mangueira, com os braços abertos, aguardando o tombo, como se pudesse segurar aquele varapau que perigava se precipitar lá de cima. Até que a coragem apareceu (ou a platéia) e o que estava trepado desceu, aos gritos e choros, ralando-se todo pelo tronco espesso e verrugoso da árvore fantástica.

Não me lembro de minha irmã Jaiana, ou o meu irmão Jaime, terem se arriscado nos braços daquela planta majestosa. Preferiam o perfume e o sabor dos frutos carnudos, fibrosos e suculentos, debaixo da bela e agradável sombra (que nos períodos de entressafras – porque não corríamos o risco de termos a cabeça atingida por um bólido cor de rosa – era o nosso lugar predileto de estudos).

Hoje são só lembranças. Nesses dias de verão, a mangueira, aquela mangueira única e inesquecível que se tornara quase um membro da família, já não vive, atingida que foi pelo cupim. Resta o sabor da memória. O sal da lágrima que embota o olho saudoso de quem viveu aqueles dias felizes e ingênuos. Esse mesmo sal que era melado e aplicado ao fruto sensual e colorido, que sorvíamos como o seio materno, lambuzando de paz e de conforto os nossos rostos e espíritos infantis.

Lívio Oliveira

por Alma do Beco | 6:35 AM | | Ou aqui: 0




sábado, outubro 14, 2006

BOCA DIURNA

Marcus Ottoni


"O fundador do grupo rebelde Sendero Luminoso, Abimael Guzmán, foi condenado nesta sexta-feira pela acusação de "terrorismo" e sentenciado à prisão perpétua por um tribunal no Peru."
BBC Brasil

Orf


BOCA DIURNA


" Art. 39:
(...)
§ 5º Constituem crimes, (...):
(...)
II - (...) a (...) boca de urna;"
(Lei Nº 9.504/97)


A todo e qualquer impedimento
eu hei de infringir durante o pleito.
Serei feito adesivo no seu peito,
não-nulo, nunca em branco ou abstento.

Eu quero, do que é crime, o agravamento:
showmício em carreata liquefeito,
inúmeros traslados no seu leito,
discursos para o nosso ajuntamento.

Você: meus votos válidos no Ibope.
Serei curva ascendente em seu galope,
beijando as suas coxas — minha urna.

Depois, favas contadas, dia 30,
eu quero que você inda me sinta
fazendo, em você, boca de urna.

Antoniel Campos


ABISSAL

É a distância que existe entre os nossos rios.

Abissal é também minha coragem
quando me atiro às águas
do meu e do teu rio grande, grandes,
por onde correm e escorrem as águas das nossas nascentes.

Onde me afundo inteira e sem pensar,
porque nesse lugar eles se fundem
e te encontro e me socorres.

Abissal é a tua poesia.

Ao te olhar de frente e de verdade
vejo que estou nua...

E quando me olhas
me molhas
dessas outras águas que vêm de ti.

E vou beber do teu cálice na tua cidade de nascer
de novo.

Neide de Camargo Dorneles



Aleluia, irmão! Cabaré é festa

O melhor nas festas do Beco não é a festa em si, os espetáculos, as exposições, os recitais. É o sorriso na face de todos. A confraternização da confraria. Os encontros e reencontros. A saudade vencida.
O melhor, com certeza, não é a lama: é o Beco.
São as conversas regadas não só a cerveja e cachaça, também uísque e conhaque, e as idéias que surgem, as brincadeiras, provocações e respostas inteligentes e sagazes que delas nascem.
É o querer bem exposto.
O prazer em ver o amigo bem sucedido em seus projetos. É ver a alegria que dá. O brinde à glória efêmera e aparentemente inútil à vitória diante de uma batalha besta e que, por isso, medonha.
É o medo de errar abatido na sarjeta do Bar aposentado de Odete ou de Aluísio, de Nazaré. No Bar de todas as Adjacências.
É a delícia dos acordes da frevança do mestre Mainha chegando saudosos aos tímpanos carentes de Evocações.
É a evocação ao verso, à nota saída da máquina de Camilinho, a menina de doze cordas que ele abraça e beija.
É esse abraço. Esse beijo. Essa emoção que arrepia a alma na calma da noite sem fim dos gatos e gatas à procura dos céus nos telhados do casario antigo, abrigo de vidas e mistérios, dores e prazeres de alcova.
O melhor nas festas do Beco é essa dor coletiva que fica da má notícia e que se vai com os assuntos renovados a outro pedido:
- Táááááááááásia!
E é, sim, também, essa arenga/delícia de confraria que se sabe irmã no aceno e no espeto que se faz carne no brazeiro fumarento.
É festa.
No Beco, é festa a festa que prepara a festa: Poesia, Carnaval, Aleluia, Cabaré.

Eduardo Alexandre




Edrisi Fernandes

Sempre me impressionou a paixão que o médico e filósofo Edrisi Fernandes – potiguar, para nosso júbilo – nutria e nutre pelo saber e cultura do homem. Desde criança, aprendi a admirar a sua dedicação às pesquisas e estudos. Meu encontro com Edrisi tem me propiciado uma instigante reflexão sobre as coisas diversas. Daí, percebi a necessidade de dar publicidade às 20 questões que lhe apresentei e que foram respondidas com sabedoria e profundidade.

Lívio Oliveira

Segue a:

Entrevista poético-filosófica com Edrisi Fernandes

Perguntas por Lívio Oliveira

1. De onde surgiram suas paixões intelectuais que hoje permeiam vários campos do saber? E quais são suas influências principais (os marcos pessoais, os ícones intelectuais, as obras)? Eu as atribuo (as paixões intelectuais) a influências do meu pai Arnóbio Fernandes, crítico de cinema e professor universitário, e do meu avô materno José Fernandes Bezerra, etnólogo/historiador das tradições sertanejas. Ademais, aos ensinamentos de mestres orientais, com quem tive a oportunidade de conviver enquanto morava no Oriente e na Europa. Influências principais: as fábulas de Esopo, as estórias das mil e uma noites, os contos de Grimm, todos os livros de Tarzã, as revistas e os filmes de Flash Gordon, os contos de Allan Poe e de Lovecraft, a poesia de Fernando Pessoa, de Mário de Sá Carneiro, de Lorca, de Quintana, os livros de José de Alencar, todos os escritos de Borges, os contos de Machado de Assis e de Rubem Fonseca, as tradições gnósticas ocidentais, a literatura mística do islamismo, os ensinamentos platonistas e neoplatonistas, a desconstrução nietzscheana, a música de Grieg, o rock do Queen, o cinema de Chaplin, de Harold Lloyd, de Hitchcock, de Schlondorf, de Woody Allen... e muitíssimas coisas mais. Na medicina, destaco a influência de Carlos Dutra, Chiquinho de Lima, Celso Matias, Munir Massud, Aldo Medeiros e Onofre Lopes Júnior.

2. Como se deu sua formação cultural-acadêmica? Aulas do colégio Marista; aulas de inglês na SCBEU; muitas leituras na biblioteca da UFRN quando, ainda criança, ia passar o dia na UFRN com meu pai; histórias sapienciais escutadas de meu avô, de meu pai e de amigos-mestres ocidentais e orientais; faculdade de medicina e de filosofia; companhia dos mais sábios; especialização médica no Japão (e consultas às preciosas bibliotecas de Hiroshima e Okayama); mestrado médico na Bélgica (com visitas a maravilhosos museus europeus e ricas bibliotecas universitárias); aprendizado prático diversificado na Marinha do Brasil; faculdade de letras (inconclusa); inúmeras viagens no Brasil e no mundo; visitas de estudo e de meditação; busca, aquisição e estudo de clássicos e obras sapienciais em diversas línguas.

3. Quais foram e (se houve mudança de rota) quais são, hoje, os móveis principais e as preocupações mais patentes nas suas pesquisas e estudos? Mudanças de rota principais: o abandono do triniteísmo cristão em nome do monismo sufi; a decepção com a prática em consultório e a empolgação com a medicina do trabalho; a aquisição de muito gosto na filosofia. Móveis principais: aprender sempre; trabalhar servindo. Preocupações mais patentes: não perder o contato com a sabedoria e as necessidades do povão; escrever e publicar textos sérios que mostrem minhas inquietações produtivas e meu crescimento frente a elas, e que possam levar aos outros inquietação e crecimento.

4. Cosmopolita por evidência, qual o sentido e descobertas marcantes e decisivas de sua vida em viagens pelo mundo? O sentido: aprender o que é que a humanidade tem de enobrecedor; descobertas marcantes: a universalidade da mediocridade, da hipocrisia, da canalhice, da peçonha; descobertas decisivas: alguns poucos indivíduos aqui e ali que fazem a diferença, e a comprovação prática do ensinamento de Vinícius de Moraes: não existe felicidade, o que existe são momentos felizes.

5. Onde se conhece mais: nas viagens e lugares, nos livros em seus lugares, no homem sem lugar? Qual o melhor ângulo de investigação humana? Todos os ângulos devem ser explorados, pois cada um deles oferece uma perspectiva particular e única. Em cada um deles pode-se e deve-se conhecer muito, mas é necessário escolher bem.

6. Cabe Deus nessa investigação? Para mim, certamente.

7. Qual o sentido do saber? Do seu saber? O sentido do saber já foi ensinado por muitos: conhecer o limite da própria ignorância e saber da necessidade de continuar aprendendo. E trazer para a vida prática os ensinamentos teóricos, multiplicando-os e transformando-os a serviço do engrandecimento da solidariedade humana.

8. O que há em comum entre o médico, o poeta, o filósofo, o cidadão? As dúvidas, inquietações, revoltas, descobertas de excelência.

9. Ética ou estética? Ambas, e com molho de metafísica.

10. A forma artístico-estética ideal está no cinema/teatro, na literatura, nas artes plásticas, na música? Onde? Em todas e em nenhuma expressão particular. Está na sinestesia, e dela se pode ter uma idéia através das experiências místicas (e há quem pense experimentá-la nas drogas).

11. Obras cinematográficas e cineastas essenciais, a seu ver. Metrópolis de Fritz Lang, "A Caixa de Pandora" de G. W. Pabst, "Cidadão Kane" de Orson Wells, "Gunga Din" e "Shane" de George Stevens, tudo de Sergei Eisenstein, Charles Chaplin, Hitchcock, Sam Peckimpah, Paolo e Vittorio Taviani, Federico Fellini, Akira Kurosawa, Ingmar Bergman, Pedro Almodóvar, Woody Allen, Joel e Ethan Cohen, Roman Polanski, Marin Scorcese, Quentin Tarantino, Volker Schlondorff, "Era uma vez na América" de Sergio Leone, o ciclo de filmes com o personagem Antoine Douanel de François Truffaut, os dois "Brancaleone" de Mario Monicelli, "Os Anjos da Guerra" de Yurek Bogayevicz, "A Queda" de Oliver Hirschbiegel, "A Festa de Babette" de Gabriel Axel, "Tampopo" de Juzo Itami, "2001: Uma Odisséia no Espaço" de Stanley Kubrick, "Aliens" de James Cameron, "Gandhi" de Richard Attenborough, "Minha Vida de Cachorro" de Lasse Hallström, "Pelle, o Conquistador" de Bille August, "Festa de Família" de Thomas Vinterberg, "Jade" de William Friedkin, "Delicatessen" de Jeunet e Caro, "Quando as Metraladoras Cospem", "Coração satânico" e "Asas da Liberdade" de Alan Parker, "Bagdá Café" de Justin Adlon, "Afogado em Números" e "O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante" de Peter Greenaway, "Justinien Trouvé ou le Bâtard de Dieu" de Christian Fechner, "Daens" de Stijn Coninx, "Asoka" de Santosh Sivan, "Uma Amizade sem Fronteiras" de François Dupeyron, "A Árvore da Vida" de Farhad Mehranfar, "Gosto de Cereja" de Abbas Kiarostami, "A Maçã" de Samira Makhmalbaf, A Caminho de Kandahar" de Mohsen Makhmalbaf, "Encurralado", "E.T." "Contatos Imediatos do Terceiro Grau" e "A.I" de Steven Spielberg, "Blade Runner" de Ridley Scott, "O Jardineiro Fiel" de Fernando Meirelles, "Syriana" de Steven Gagham, todos os filmes com Steve McQuenn, Jack Nicholson, Robert De Niro, Al Pacino, "O Pagador de Promessas" de Anselmo Duarte, "Macunaíma" de Joaquim Pedro de Andrade, "Como Era Gostoso o Meu Francês" de Nelson Pereira dos Santos, "O Pagador de Promessas" de Anselmo Duarte, "Eles Não Usam Black Tie" de Leon Hirszman, "O Homem que Virou Suco" de João Batista de Andrade"... a lista seria enorme se eu continuasse (sou cinéfilo desde criança), e veja que já esqueci o título, o diretor e o elenco de muitos filmes.

12. Livros. Os essenciais são os livros sapienciais e os clássicos de todos os povos, como os “Textos das Pirâmides” do Egito, os "Hinos ao Sol" de Amenófis IV-Akhenaton, o poema de Gilgamesh, o Hagakure e o Genji Monogatari, o Tao-te Ching de Lao-Tsé, o Chuang-Tsé, o Shih Ching e o Chu Ching , os Analectos de Confúcio, a Arte da Guerra de Sun Tzu, o Rigveda, as Upanishads, o Bhagavat Purana, a Bhagavad-Gita do Mahabharata, o Ramayana, o Yoga Vasishta de Valmiki, o Viveka Chudamani de Shankara, o Bardho Todol tibetano, os livros de Nagarjuna, o Dhammapada, os Kama Sutra, os Gathas de Zaratustra, o Masnavi de Rumi, as estórias de As Mil e Uma Noites, a Bíblia Hebraica e o Talmude, o Sefer Yezirá, o Bahir e o Zohar, os Evangelhos (em grego e em latim), o Corão, Os Engastes da Sabedoria de Ibn Arabi, a Ilíada e a Odisséia, os Trabalhos e os Dias e a Teogonia de Hesíodo, a Eneida, o De Rerum Natura de Lucrécio, a Arte Amatória de Ovídio, o Kalevala registrado por Lönnrot, o Edda nórdico, a poesia escáldica, os relatos sobre os Nibelungos, o Parsifal, o Tristão e Isolda, o Mabinogion galês, o Hanes Taliesin, os romances do ciclo arturiano, a poesia provençal, o Dom Quixote de Cervantes, todo o Shakespeare, os poemas aztecas de Nezahualcoyotl e Ixtlilxochitl, o Chilam Balam maia, o Ollantay quéchua, o Ayvu Rapita dos mbiá-guarani... paro por aqui sabendo que devo ter deixado de mencionar algumas obras importantíssimas.

13. Música. Os clássicos ocidentais (especialmente Brahms, Beethoven, Chopin, Schumann, Mozart, Grieg, Rimsky-Korsakov, Villa Lobos), música "celta" dos grupos Clannad, Dervish, Altan e Kíla, canções dinamarquesas de Anne Dorte Michelsen, música sueca do Garmarna, nubas andaluzes/marroquinas, ragas indianas, as simbióticas composições de Ananda Shankar, canções da maravilhosa Sarmila Roy, música do Rajastão e do Kashmir, cantos do saudoso ustad Nusrat Fateh Ali Khan, canções líricas do pakhtun Khail Mohammed e do iraniano Jamshied Sharifi, cantos iemenitas de Ofra Haza, cantos egípcios de Umm Khultum, cantos africanos do Ladysmith Black Mambazo, Fela Kuti, Lokua Kanza, Ebenezer Obey, Youssou N'Dour, Ali Farka Toure, teretismos bizantinos registrados por Christodoulos Halaris, música provençal, canções cubanas de Ibrahim Ferrer, Bola de Nieve, Pablo Milanez, Silvio Rodriguez, música étnica em geral, música instrumental em geral, discos do saxofonista Jan Garbarek, blues, rock progressivo e sinfônico, MPB (notadamente Vítor Ramil e Raul Ellwanger), samba à antiga, chorinho, poesia campeira de Jayme Caetano Braun e Rubem Borges Fialho (na voz de César Escoto Passarinho), canções gauchescas de Leopoldo Rassier, as baladas do "The Automatics", a música "pasteurizada" mas bem-feita do "Cold Play".

14. Outras obras essenciais, a seu ver. Já falei de tantas... relembro toda a obra de Borges, inclusive aquela em colaboração, que está para ser publicada no Brasil; "O Pequeno Príncipe", de Saint-Éxupery, a obra de Malba Tahan e a de Khalil Gibran, a literatura iniciática de Carlos Castañeda, a obra de Rabindranath Tagore, as estórias instrucionais do mulá Nasrudin, os livros do e sobre o coronel Richard Francis Burton, "Os Sete Pilares da Sabedoria" de T. E. Lawrence, os fragmentos dos pré-socráticos, a obra completa de Platão, a Metafísica, o Organon e o De Anima de Aristóteles... e todos aqueles que se inspiraram neles ou os atacaram com talento e produtivamente.

15. Quem mudou o mundo, historicamente falando? Várias pessoas que tiveram suficiente arrojo ou loucura, e que foram apoiados nos seus intentos, enquanto vivos (como Gandhi, Hitler, Einstein, Werner von Braun) ou principalmente depois de falecidos (como o Buda e Jesus Cristo)

16. O que mudou o mundo, historicamente falando? Apropriando-me do título do excelente livro de Jared Diamond, "Germes e Aço" - e eu acrescentaria, resumidamente: o fogo, a invenção da escrita, o dinheiro, os originais ensinamentos do profeta iraniano Zaratustra (tremendamente negligenciados), a filosofia e a ciência gregas, o estado romano, a cobiça dos bárbaros, os missionários irlandeses, os profetas semitas, a ascensão do Islã, as destruições mongóis, as cruzadas, as navegações de Zheng He e dos portugueses, o renascimento italiano, a revolução francesa, o império britânico, a revolução americana, os derivados do petróleo e o poder do átomo.

17. O que precisa mudar no mundo? Por quê? Precisa haver mais cooperação internacional com vistas a uma maior preservação dos recursos de planeta e para garantir um desenvolvimento sustentável e sem muitas discrepâncias entre povos e entre classes.

18. Quem, ou o quê, mudará o mundo? O que está mudando, nesse momento? Quem mudará o mundo serão, como sempre, pessoas arrojadas ou loucas, apoiadas nos seus intentos pela maioria ou pelos mais poderosos. Fora fundamentalistas como o presidente Bush ou Osama bin Laden, ou desaforados como Kim Jong-il e terroristas suicidas, quem tem mais chance de mudar o mundo é Jesus Cristo (voltando como prometeu) ou os pilotos dos misteriosos discos voadores (se resolverem intervir). O que está mudando é que, na pós-modernidade, os sonhos estão dando lugar à desesperança, a abundância de recursos naturais está em cheque e a concentração de renda beneficia proporcionalmente a muito poucos.

19. O que o tempo representa para você? Algo que, como dizia Virgílio, foge irreparavelmente, e que precisamos fazer render dormindo pouco e aprendendo muito. Três frases interessantes: 1) o tempo não passa, nós é que passamos; 2) cada dia a mais que comemoramos é um dia a menos que nos resta; 3) devemos viver o dia de hoje como se fosse o último, e aprender com o dia de ontem como se não fôra o penúltimo.

20. O ser humano é um projeto viável? Egoicamente ele já mostrou que sim do ponto de vista biológico (embora progressivamente compartilhe o planeta com cada vez menos espécies, e corra o risco de ser dizimado por epidemias ou numa hecatombe nuclear favorecida por ele mesmo), mas psicologicamente ainda precisa provar isso. Com todas as ressalvas do "Assim Falava Zaratustra" de Nietzsche, resta ao homem reinventar-se segundo o "sentido da terra", ou segundo o ensinamento da unidade mística que o Islã conhece como tawhîd, sobre a qual Abû Bakr as-Shiblî (m. em 945/334) falou: "Quem define a tawhîd de modo explícito é um apóstata, quem lhe faz alusão é um biteísta, quem a evoca é um idólatra, quem emite raciocínio sobre ela é um inconsciente, quem guarda silêncio a seu respeito é um ignorante, quem se acredita próximo dela está distante, quem faz dela seu êxtase é deficiente".

por Alma do Beco | 9:42 AM | | Ou aqui: 0




segunda-feira, outubro 09, 2006

PRAÇA D'ALMA

Marcus Ottoni



"Os dois primeiros blocos foram quase que totalmente dedicados à 'lavagem de roupa suja'."

Folha On Line, sobre o debate Lula X Alckmin

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Oficina de Coquetéis de Cachaça antecede
Festival Gastronômico do Beco da Lama


Nesta quarta-feira, 11 de outubro, a partir das 15:00h, na Rua Dr. José Ivo, Beco da Lama, será realizada a I Oficina de Coquetéis de Cachaça. A promoção tem por objetivo chamar a atenção para a realização da terceira edição do Pratodomundo - III Festival Gastronômico do Beco da Lama e Adjacências, que acontecerá entre os dias 4 e 24 de novembro.

A I Oficina de Coquetéis de Cachaça é uma promoção da Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências - SAMBA, em parceria com a Agência Cultural do Sebrae e Cachaça Maria Boa, lançada na última edição do Pratodomundo. O evento reunirá profissionais do setor boêmio e gastronômico do centro da cidade, que conhecerão receitas de coquetéis a partir de frutas regionais.

Nesta quarta-feira encerram-se as inscrições de bares e restaurantes que concorrerão ao festival de gastronomia do Beco da Lama, esperando-se a ampliação de pratos concorrentes, 11 no ano passado. Asw fichas de inscrição podem ser obtidas e entregues no local da Oficina, ou na sede da Agência Cultural do Sebrae, no Solar Bela Vista. Na primeira edição do Pratodomundo, o ganhador foi o Bar da Amizade, com uma rabada, e, na segunda versão, o prato vencedor foi a buchada do Bar de Mãinha.

A presença de empresários dos bares, botecos e restauranes participantes, bem como das instituições parceiras e demais pessoas interessadas é considerada de fundamental importância pelos que estão trabalhando na produção do III Pratodomundo, sobretudo pela oportunidade de fortalecer o espaço urbano do Beco da Lama e adjacências, que desponta com grandes potenciais para o desenvolvimento de uma política voltada para o turismo cultural no centro histórico de Natal.


B a m b a

Que bamba, meu coração na corda bamba...
A lua e o asfalto e as nuvens passantes no alto, cheia lua maré cheia e cá em baixo os fios e os fios e os rios, fio do asfalto e eu no meio fio

Tudo minha alma nada, qual bamba, que bamba, meu coração na corda bamba... Bem bam bam bam faz meu coração quando te sente, quando você passa, quando eu chego e você chega e me abraça, bem assim meu bem: sem bamba e bambo você me encontra no bambo...

Você assim sem mango nem samba, mangueiral, solto as mangas, sou tua, sou tua manga, sei que somos bambas, que bamba, meu coração só quer saber de samba... Meu coração na corda bamba... Quando você samba, quando você aponta, na rua na minha direção do seu coração, na minha onda...

Ah, quando você apronta, eu fico é tonta e pronto, também apronto! Quando o que eu quero mesmo é que você se deixe, cale a boca e me beije... E faça nosso chão rodar... E que o sol as estrelas e a lua se deleitem e me faça brilhar, feito um feixe e tu a brilhar com um feixe...

Esse nosso coração radar, seres bamba, se você não tá pronto eu fico na corda bamba, vem cá benzinho, vem cá pro meu samba!

Meio fio razão pro nosso rio emoção... Fios tantos que se ligam, se liga! Vamos fazer uma liga? Deixa a lua beijar o mar, o asfalto, o mato, o que há... Que virá...

Que bamba, meu coração na corda bamba... Vem cá com seu bamba all star e eu de chinelas havanas, vem cá meu bamba, vem, vamos fazer samba!

Civone Medeiros



Ela, a Praça d'Alma

...Penso numa praça ou melhor começar assim: lembro de uma praça. Na praça que intervém com frequência entre os olhos da minha memória. Imagética. Visional. Sei que é só lembrança, semi-desconexa, déjà vu. Mas, a sinto tanto... Sei de seus cheiros, cores e vazios explícitos. Sei que essa praça arquivada quiçá aleatoriamente na memória, vivencialmente não a conheço; nem sei em que lugar pode ser que esteja. Especulo sua locação. Imagino-a aqui perto de casa mas não há praças por perto. Pode ser no limite de um precipício ou a beira-mar. Pode ser aos pés de uma montanha ou serra mas não posso precisar onde e, pode ser nas cercanias da província onde nasci, mas lá não tenho certeza que haja praças como essa; a que vejo dos olhos da memória. Pode ser que a criei com traços e linhas de praças outras por onde passei. Gosto de praça assim como de oásis e ilhas. É agradável essa praça; agradável ao olhar transeunte e aquietado por entre ela. Praça que tem um “quê” de aprazível, algo de turbulência de tufão, algo de abandonada, como um quintal de casa e também calmaria solene e silente de cemitério; tem um toque de bosque virgem, daqueles que se penetra apenas com os olhos e a alma e jamais com pés e mãos. Está claro! Essa praça é só imaginação. Nessa imaginação tem árvores tantas inclusive baobás; trilhas ariscas, bancos alheios e mesas de madeira; tem fontes e canteiros muitas vezes floridos, um ambiente que atiça lúdicos espíritos; tem capins selvagens e espalhadas pedras tão mais velhas que a memória humana; quando chove em choro o céu formam-se poças-espelhos; tem muitas sombras e muita sombra e também clareiras e cantões; pássaros vários passam por ela, a praça, a imaginação. É ordenada e naturalmente caótica; verde bucólica; ventos ventam entre suas árvores frondosas; é tão ampla como um coração amoroso e, à guisa de passos, vasta como a palma de um pé. Essa praça é e está sitiada pela urbe. É poética e boa para prosa. Telúrica. Praça que tem alma própria. Ela é só imaginação. Ela é uma praça.

Civone Medeiros



ODETE: UMA VIDA NO BECO

O Beco da Lama, que é pai de todos os becos, tinha uma mãe que durante 28 anos o alimentou. De pirão, sarapatel, peixe no coco, cuscuz, macaxeira, feijão verde, e também de música e poesia, apesar de não cantar, não tocar violão nem saber o que é um verso.

Era ela que todo dia, cedinho, abria seu pequeno estabelecimento de porta única, três metros, se muito, de frente, quatro metros, idem, de fundo.

Uma cozinha apertada, um banheiro que mal cabia uma alma.

Mas era ela quem estava ali, a receber quem chegava, com a fome que estivesse.
A galinha caipira cheirava, levando paladares de sonhos pelas ruas maiores da cidade, mas ela, pequenina, nem se dava conta do manjar que preparava. Era como se nada fizesse. Como se aquilo apenas fosse mais um dos tantos pratos preparados vida a fora, a saciar bocas muitas vezes ingratas, estômagos vazios muitas vezes também de ternura e agradecimento.

Dona Odete foi mãe do Beco por merecimento porque o tinha como filho. Adotivo, é verdade. Mas um filho que viu crescer e, como toda boa mãe, esperou vê-lo melhorar de vida, sair da lama primeva, tornar-se saneado e querido para ser alma da cidade.
O Beco ainda é mal cuidado e muitas vezes imundo, mas seu carinho por ele não diminuiu por isso.

Reclama melhor iluminação. Clama por segurança. Pede paciência diante das autoridades que dela cobram, mas que pouco fazem pelo pedaço que ajudou a fazer boêmio e referência de uma cidade.

Foi no batente frontal de seu estabelecimento que o maestro Mainha resolveu morrer, aos 80 anos de muita canseira vida a fora. Ele que, pressentindo a morte chegar, para lá dirigiu-se, pediu a última, despediu-se, e foi-se como chegou à vida: sem nada ou quase nada, porque deixou amigos poucos que o amavam, é verdade, e composições que ninguém sabe se um dia chegarão à memória: coisas preciosas.

Quando chegou ali, o Beco da Lama era bem mais lama que beco, nem nome de rua tinha. Era apenas fundos de casas famosas de ruas afamadas e bem tratadas por que abrigavam comércio e casas de gente bacana. O Beco servia-lhes apenas para despejo de águas servidas. Só. E para a ostentação do nojo que se mantém, sem que nada façam por ele.

Mas Odete acreditou e lá ficou, fazendo o seu cuscuz matinal, torrando sua galinha caipira, mexendo o pirão do peixe no coco, servindo a talagada de cana para os papudinhos de todos os dias.

O sorriso ingênuo que sempre trouxe nos lábios, sorriso convidativo, diga-se, poucas vezes deixou-se anuviar por acontecimentos tristes, ali também tidos. Manteve-se majestosa e altiva, mas hoje não enfrenta diariamente a lida, velhice chegada, esperança ida, porém, na certeza de que deixou um fruto. Maduro. Tenro. Mas que, se cuidado, novos trará, e manterá viva a labuta que se merece labuta, porque do trabalho vive o homem que também vive do sarapatel que Odete preparou um dia e da cachaça que fê-lo esquecer a vida não querida, mas real, de lá adiante, bem longe do Beco. Onde a vida não lhe mais sorri.

Odete partiu para sua aposentadoria merecida. Ficou o Beco e o seu eterno encantamento.

Eduardo Alexandre

por Alma do Beco | 9:54 AM | | Ou aqui: 0




sábado, outubro 07, 2006

ÁGUAS DAQUI E DE LÁ

Marcus Ottoni


"O esforço de cientistas que se debruçaram sobre complexas questões como porque os pica-paus não têm dor de cabeça enquanto bicam os troncos das árvores à procura de besouros, ou o papel da massagem retal na cura do soluço foi reconhecido nesta quinta-feira com o prêmio IgNóbil, uma sátira ao Nobel, entregues em Cambridge (Massachussets) apresentados por ganhadores do prestigiado prêmio concedido pela Academia Real Sueca."
France Press



o rio
para Civone, Mércia; Antoniel, Nei; Orf, Dunga
e todos os meu amigos de lá



o sol brinca de potengi nas águas do capibaribe
e brinca de capibaribe se porventura estou lá

o sol sabe de tardes de margens de correnteza e mangue
sabe de igrejas e fortes à beira-rio-quase-mar

o rio por sua vez sabe de água caranguejo e gente
do que se diz do que se vê de quase tudo que se sente

o rio sabe de ser porto e caminho mortalha e berço
acalanto e incelença — todas as cantigas — e mais

sabe ser fêmea bem-amada pelo sol e oferecida
ao rio macho à luz da lua para de novo a amar

e enquanto o sol sonha-se rio e liquefaz-se de poente
o rio mais quer-se rio não sol-no-rio-quase-mar

e brinca de ser potengi nas águas do capibaribe
e insiste em ser capibaribe se porventura estou lá

Márcia Maia



O Potengi me tange

Os barcos do Potengi
Navegam meu olhar

Quando embarcam
Em barco com eles

Quando tu embarca
Meus olhos marulham, embaçam

Me molham de água de rio
Ou é por esses olhos que o rio corre, decorre

M’esqueço que outras vezes sou eu quem vai
Vôos, navegos e voltas, avenidas dos contornos, retornos

Você sempre torna, me volta
Qual abelha, eu também estou sempre no entorno

Corre-corre
Pra boca da barra, que sou

Corre, da boca do rio de você
E m’atiça, desperta os cios, revela

Me beija, me descerra e me descobre
Descubro teus véus, talos e flores, afloro

Xananas, acácias, buganvílias, mangabeiras
Flor de jambo no chão, tapete róseo

Me vem tudo à mente
As imagens mais belas

Minhas carícias sem defesas
Amo como quem não teme

Rósea a flor desperta entre pernas que te beija
A espada de santo é tua, e vem intensa, com leveza

Teus em mim, semens sementes
Te protege Potengi em meu rio ventre, aflue fluente

Me molho de teus molhos e manhas, lambuzo-me desse rio
Te como a tarde, de noite, na madrugada, pela manhã

Nem sei onde me ser, ou me estar
Como te ser star, me serestar

Qual não me ser, qual estar
Quero você, meu anelo de strass

Rio sozinha, atlante
Ou com tua presença, ausente

Saudade é isso
Que não se explica

Então é sodade
E banzo não se benze, só bate

Que às vezes nem existe, se inventa
Ou é verdade ou é um intento de ausência

Pra sentir mais, o que se sente
E escrever quiçá um poema

Me preza o rio sem pressa, que prezo
Desrepresa-se um rio inteiro de amar, d’ardor

Fitar você é transe
Trance de olhares em flamas, é transa, corpos em trança

Me beija a cidade, correnteza
E esse amor de mililitros me'mbriaga, me néctar

Navego com ele
O crepúsculo me leva ao longe

Fico sem saber onde é onde
O não-sei-onde

Onde eu te encontre, encante, você me cante
No quando, num quarto, de horas, num canto

Às vezes a dista é dentro
Nem é nos longes

Onde encerro meus pés
O agora e os ontens

Onde o finito me horizontes, infindos
Na terceira margem das visagens

Todos amanhãs me encontrem, até nas tangentes
Onde minhas mãos me escorrem

Artimanhas sensações
O Potengi me é ponte

Aporte dos sentires, quereres
É da vida, cenário, inventário, roteiro, mirante

Alma cheia de braços e mangues, me navega pros teus ondes
O Potengi, amor, pois é, ele me tange

Civone Medeiros

por Alma do Beco | 8:19 AM | | Ou aqui: 0


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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