"Morales antecipa de surpresa votação de Constituição"
Da BBC Brasil, sobre o momento político na Bolívia
Conheci Assis, ele tinha bem menos de 18 anos de idade. Parecia ainda garoto, franzino e com medo do mundo. Frágil.
Trazia no semblante a dor de família pobre do interior, em busca de melhores dias na capital. Retirante.
Algumas folhas de papel ofício numa mão; na outra, pedaços de carvão.
Vivia a vida, pelas ruas, desenhando a carvão retratos de pessoas.
E todos ficavam impressionados com o talento do menino interiorano, rápido e preciso em seus traços. Um minuto bastava para o retrato ficar pronto. E com fidelidade.
Eu estava fazendo uma exposição de Galeria do Povo, na Praia dos Artistas. Ele ficou impressionado com o que viu. Através dos trabalhos expostos, o menino descobria ali o que era arte. Seus retratos ganharam temática e passaram a ser o algodoal do Seridó, o menino armando alçapão, os praieiros em refeição diante da espinha do peixe no prato, a mulher na janela da pobre casa de taipa do seu sertão.
Assis saía do carvão para descobrir o giz de cera, apreendendo técnica que valorizaram o seu talento.
Seus trabalhos vendiam fácil. Agradavam em cheio a tantos que os viam. E Assis não perdia parada comercial. Estava precisando, qualquer dinheiro bastava, desde que satisfizesse a necessidade existencial do momento. Outros quadros viriam e, com eles, outros dinheiros.
Estava profissionalizado o menino que nunca teve escola. Menino que admirava a poesia dos cantadores repentistas, a música dos emboladores, a labuta da gente simples em busca da sobrevivência.
Assis passou a registrar em traços, cores e emoções a vida que que estava a sua volta.
E vieram os sanfoneiros, o bar, as serenatas de violões, os rela-buchos de forró.
Cedo ganhou reconhecimento, merecendo e recebendo os maiores prêmios de pintura da cidade, para iniciantes e, logo depois, profissionais.
Seu nome ganhou fama e ele empreendeu viagens e exposições em outras terras.
Ganhou dinheiro. Gastou. Ganhou mais dinheiro, gastou de maneira pior, pagando tudo para todos, recebendo qualquer um em sua casa sempre aberta a qualquer festa. Generosidade e tolice.
O bar, a bebida, sua perdição: onde ganha hoje o suficiente ao dia-a-dia do seu sustento, e onde amanhã tudo renovará, oferecendo seus quadros produzidos ao despertar.
Eduardo Alexandre
Assis Marinho
A SOLIDÃO E O PÁSSARO
Sozinho.
Todos os que vieram já estavam longe. Nem as ligeiras sombras de presença existiam mais.
O estômago vazio e a gripe teimosa, o que sobrou enchendo o corpo e esvaziando a alma. A casa calada, irônica. O rádio azul falando e cantando sem que seus ouvidos escutassem. Deu-se conta: a solidão se plantara e ele se transformara em morcego desesperado procurando saída.
Fechou-se a porta do quarto. Ruído suave do ar condicionado, único silêncio audível.
Abriu o livro na página marcada, denunciando suspensão de leitura. A luz fraca e a própria vontade menor faziam as letras distantes. O pensamento escapulia, ia e voltava. Pessoas e mundos, tempos e estações passavam. Cumprimentavam-se, ignorando. E resolveu deixar que a solidão deitasse ao seu lado. Ofereceu-se, sem forças.
A solidão é fria, seu corpo é macio. O abraço veio sólido e silencioso. Como uma angústia que começa devagarinho e se torna súbita, em gigantesca montanha de neve e fogo. "Assim começam os pesadelos", admitiu. Deixou-se tomar pelo envolvimento. " A necessidade de não estar sozinho faz isso", pensou. Nem percebeu que voava. Como um pássaro ferido, de asas pesadas.
Pairava e bailava sobre a enorme cidade. E avistou a janela aberta. Estranha janela tão conhecida como um poema perdido entre papéis em completo esquecimento. "Ali estará o meu amor", disse com certeza. O peso das asas fazia-lhe o vôo curto. Esforço supremo, aproximação. Lá dentro estaria o amor? Haveria abraço, um sorriso, uns olhos buliçosos e um beijo real?
A janela aberta. E uma porta certamente fechada.
Tentou arremeter vôo rápido. Onde forças e coragem?
"Nenhum amor me espera, nenhum". E deixou que o peso da alma aumentasse sobre as asas.
E se foi deixando cair, despencar: ave baleada certeiramente.
O livro caiu sobre o peito.
Levantou-se e apagou a luz. Com cuidado, deitou-se e num sussurro que explodiu como um grito, segredou:
- Boa noite, solidão. Abrace-me, indesejável amante.
E durante noites e noites nunca mais dormiu.
Rubens Lemos
São Paulo - 1983