Ferreira Gullar
Poeta abandona a banda
Enquanto o assessor de imprensa da banda, Petit das Virgens – que nasceu sem reclamar o sobrenome - vociferava em dúvida sobre o novo dia de ensaio, dizendo que talvez na terça-feira “não desse público”, o ensaio, marcado britanicamente ia sendo adiado em minutos. O maestro Gilberto Cabral olhava para um lado e para o outro. Às vezes, fixava-se na placa onde está escrito “Largo Boêmio José Alexandre Garcia”, como se pedisse ajuda ao patrono da rua Chile.
Havia um clima de inquietação.
Menos pelos cálculos depressivos de Petit. Parecia que às 19h03 todo mundo estava mesmo era olhando para o maestro, que não parava de, também, olhar para todos os lados. Uma loura atenta observou que talvez ele estivesse esperando alguém muito importante.
Baco, um dos mais importantes auxiliares de Haroldo Maranhão – idealizador da banda -, disse, entretanto, que, de importante, “bastava ele”. E completou: “Gilberto deve estar observando a aura do Potengi, sentindo o samba e a musicalidade que irá brotar em segundos...” Alguém disse que ele estava muito poético enquanto sua cara metade ainda nem tinha chegado. Hummm, rosnou outro...
Fuxicos a parte, o maestro iniciou o ensaio. Música belíssima e bem interpretada pelos membros da banda – que é formada por cerca de 40 músicos -, que tocavam com afinco. Mas, ele – Gilberto -, continuava a olhar para todos os lados. Em alguns momentos parecia que sua visão tentava alcançar a avenida Tavares de Lyra, lá longe, quase sem ser notada. Mas ele olhava. Olhava com esperança. Às vezes, se virava em direção ao Porto de Natal, como se um navio pequeno e soberbo pudesse atracar em meio aos armazéns...
De repente, parou o ensaio e desafiou: “Alguém aqui sabe tocar um pandeiro? Tem alguém aqui que possa substituir um traidor? Vocês sabem a falta que faz o toque do poeta Antoniel Campos, que vocês chamam de Bardin? Vocês imaginam o que os meus ouvidos treinados estão a reclamar? A reclamar daquele traidor, daquele traíra, daquele rato, daquela lagartixa...”
Foi quando o artista plástico Flávio Freitas, que ia passando serelepe, enquanto terminava de escrever a partitura de uma música de Petit das Virgens, de 1978, reclamou:
- Lagartixa? É comigo?
Todo mundo olhou para uma Kombi estacionada debaixo da principal luminária do Largo José Alexandre Odilon Garcia.
Leonardo Sodré
Natal, RN
Aquelas magníficas praias, aquelas dunas que são um convite à aventura, uma paisagem de sonho, tendo como fundo um mar deslumbrante
Natal, RN (onde estive para um evento literário), é longe. Não há vôos diretos de Porto Alegre e, por causa dos inevitáveis atrasos, leva-se umas 10 horas para chegar lá. Mas vale a pena, quanto a isto não tenham dúvida. Em Natal descobrimos que, como diz a música de Jorge Ben Jor, moramos num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza. Que natureza é aquela, que natureza! Estamos falando do litoral, obviamente. Aquelas magníficas praias, aquelas dunas que são um convite à aventura - é o lugar em que provavelmente se vê mais buggies - enfim, uma paisagem de sonho, tendo como fundo um mar deslumbrante.
E o mar. Os verdes mares de minha terra natal, celebrados por José de Alencar, são algo. Mar é coisa que apela para as camadas mais profundas, mais arcaicas e portanto mais autênticas de nosso ser. Do mar nasceu a vida, ao mar a vida sempre quer voltar, e daí a atração que a praia de mar exerce sobre nós, e que, a cada ano, leva milhões de brasileiros e estrangeiros para o litoral potiguar.
Há mar e há mar. Nós, gaúchos, temos mar, o Nordeste tem mar. Mas estamos falando de mares diferentes. O nosso mar, mar de praias abertas, de um litoral que é uma linha reta de Torres até o Cassino, é um mar bravo, um mar frio. Um mar que nos desafia, que nos castiga até. É preciso enfrentar, nos diz este mar gaúcho. Enfrentar o choque das ondas, enfrentar sobretudo o frio, porque vida é assim mesmo, viver é lutar. Claro, depois a gente se acostuma, e até gosta. Contudo, o rito de passagem que é entrar no mar é desafiador e inevitável.
No Nordeste é diferente. A água é tépida, a água é límpida, a água é acolhedora - é maternal, até, a coisa mais próxima ao líquido amniótico que poderíamos imaginar. Este mar, aliás, é uma metáfora para um jeito de ser brasileiro: o jeito amável, o jeito receptivo, o jeito que pode ser visto como submisso e quem sabe como servil. E esse jeito condicionou boa parte de nossa história e de nossa cultura. Dele se aproveitaram o coronelismo, o autoritarismo em geral, a corrupção.
O Rio Grande do Norte atraiu estrangeiros por duas razões. A primeira por sua posição estratégica. Olhem o mapa e constatem: é o extremo leste da América Latina, a região mais próxima à Europa e à África, razão pela qual na Segunda Guerra os norte-americanos construíram ali a sua maior base aérea, o que valeu a Natal o apelido de "Trampolim da Vitória". Mas Natal também é a "Cidade do Sol"; em média são 300 dias ensolarados por ano, o que funciona como ímã para os europeus: a viagem entre Natal e Lisboa ou entre Natal e Madrid leva menos tempo do que ir de Natal a Porto Alegre. Resultado: o crescimento da cidade é espantoso, constrói-se por toda a parte. O Rio Grande do Norte e o Nordeste em geral estão mudando. Mas o mar ainda continua o mesmo, ao menos por enquanto. O que, convenhamos, é um consolo.
Moacyr Scliar
Jornal Zero Hora - Porto Alegre - RS - 02.12.2007