terça-feira, novembro 20, 2007

O SORRISO DA ALMA NATALENSE

Em defesa de postulados sagrados
Eduardo Alexandre

Que energia de sorrisos é essa, que emana do Beco? Qual é a mágica, a magia, o mistério?
Ali pisou Cascudo, Navarro, Luís Carlos Guimarães, Berilo Wanderley, Jorge Fernandes, Itajubá, Açucena, Mainha, Rubens Lemos, Bosco Lopes.
Berço da cidade, as adjacências são todo o ir-e-vir dos nossos mortos, de nossa história, de nossa luta para virar cidade em tanto tempo. Como demorou ser cidade! Todos os nossos mortos perambulam por lá: Plínio Sanderson, Marcelus Bob, Bob Motta, Civone, Luciano de Almeida, Pedro Abech, Lula Belmond, Leo Sodré. O bardinho Antoniel e seu pandeiro de bandas carnavalescas, do Beco à Ribeira. Valderedo, Falves Silva, João da Rua, Franklin Serrão, João Gualberto, Jota Medeiros, Pedro Pereira, Sandra Shirley, Help, Nalva, Ana, Valéria, Ceiça Oião.
Quantas festas não fez a Praça da Alegria? Poucas por ano, é bem verdade: São João, Nossa Senhora da Apresentação, Natal.
Anos e anos de esperas, embalos em redes, Linda Baby, Pedrinho Mendes.
Beco de santíssimos saberes, pixe no muro sujo, Grogs, irados Mad Dogs em Liverpool. Alcatéia, cigano praieiro, paparazzi, khrystal.
Papapá, Legião, Petit das Virgens.
Comédias.
Diz Cabrito que foi o carnaval o que acanalhou o Beco. Os rapazes se reuniam no Natal Club, Esquina da Rua Nova com a Inhomerim e saiam num Zé Pereira frenético, ladeira leve da Rua da Palha acima e abaixo, folia grande em portas estreitas e elevadas janelas, papanguzando o mundo.
Beco que já foi lama, hoje é fama e é alma.
Beco do Potiguarânia, de boêmios famosos. De maçonaria.
Adjacências de Cinemas, Cocadas e Grande Ponto de João Machado, Djalma Maranhão, conversas sem fim jogadas fora, linho branco; líricos e loucos, Tubiba, Mulamanca. Beco da chamadinha do bandoleiro Manoel Rodrigues de Melo, eterno acadêmico do Beco. Professor Panqueca. Professor Grácio. Waldemar de Almeida, onde andarão? Gumercindo, Othoniel, Eduardo Medeiros... Praieiras e modinhas.
Beco do Rato, de Fia, de Gardênia, do Índio, do Estranho. Beco sonâmbulo. Da vida e de mortes. De mortais, imortais e mortos-vivos. Beco de vidas. Muitas vidas. Beco gato.
Esse sorriso do Beco choroso de Pinxinguinha, do pau-de-arara Aldair Soares, é o sorriso da alma natalense, alegre criatura que perambula, perambula feito o carteiro de Cascudo, Helmut Cândido, ou o peripatético Volontê, como o chamou Nei Leandro, vindo, devagarinho, manhãzinha, ladeira acima, com uma corda de aratu dependurada em cada indicador.
Beco da meladinha de Nasi. Da prova dos nove da cachaça, da poesia. Da segurança de Manoel de Brito. Dos doutores Zizinho e Chiquinho, fundadores da Samba, Beco de comerciários, camelódromo, sebos, bares, música, fumaça, amor. Assaltos, sobressaltos, alegria e encontro, Beco de muitas noites e dias de serenatas regadas a cerveja e buchada, rabada, dobradinha, cabeça-de-bode, carne-de-gato. Para todos e pra todo mundo, mote e glosa, verso e prosa, chorinho.


Caro amigo Eduardo 'Dunga' Alexandre


Que maravilha de texto!

A emoção da saudade aliada à sabedoria da vida, fazendo-a como ela é - um continuum no tempo e no espaço.

Este é o componente maior de identificação: sentir a presença dos que continuam a bebericar em outros Becos da Lama, formados de branquejadas nuvens, com algumas mezinhas de cumulus-nimbus espalhadas no horizonte fronteiro ao estabelecimento - como gostava o portuga Olívio de dizer - com contas penduradas nos cirros-estratos, por suas alturas - e foi licença poética, pois nem sei se no Beco de hoje existe este costume secular.

Se há um lugar em que restamos é aquele em que somos originais, autênticos: o local onde nos soltamos das amarras diárias, em que voltamos - cada um de nós - aos momentos mais significativos de nossas existências. E tal lugar é o 'bar', o lugar de encontro com nossa identidade real, onde somos conhecidos - e reputados - por qualidades que só ali vingam, e que só alí persistem.

Os amigos, os conhecidos, os habituês - todos, enfim - possuem, uns dos outros, uma percepção particular, gerada e sustentada naquele pequeno reino - e que me perdoe o termo, mas o ambiente de um bar boêmio é monárquico, com todas as suas prerrogativas de nascimento, descendência e serviços prestados à ordem.

Não é coincidência que as irmandades tenham como tradição o encerrar seus trabalhos com ágapes; nem que os antigos se libertavam das restrições mundanas realizando festins. Os deuses arcaicos - quando eram mais humanizados - bebiam hidromel, e riam desbragadamente das peças pregadas aos mortais, antes, é claro, que por eles se apaixonassem. Sem esta paixão, o Olimpo não teria razão de existir, pois ela é que dinamizava os fenômenos que davam sentido ao mundo.

Sei lá porque, meu amigo, mas sou um canguleiro que chegou atrasado no tempo. Amo a Ribeira, amor inconseqüente e sem futuro pela diferença de idade. Repito que não é veneração por pessoa mais velha, nem amor filial, nem pejado de fraternidade. Não, não é um carinho familiar, nem um desejo incestuoso. É amor, simplesmente amor. E amor não correspondido, pois a dama adormeceu para nunca mais despertar. Mas a vida, meu caro Dunga, para ser completa, deve ter sonhos que jamais se realizarão, na mesma medida daqueles que completarmos.

Eu, que conheço tantos desses mortos que perambularam álacres pelas ruas hoje quietas, nunca os vi, nem com eles reparti uma gelada. No entanto, conhecendo-os em suas autenticidades, sou como que um parente distante, e posso falar deles com certos direitos, embora sem intimidade. E há mais: os boêmios restam por serem boêmios, por serem originais, por jamais deixarem de ser o melhor de si mesmos nem que seja um pouco a cada dia, ou a cada semana. Ninguém resta, ou é lembrado com carinho e alegre saudade - do que aquele que possui um grupo - heterogêneo social, político, cultural e econômico - em meio ao qual se dispa das máscaras e fantasias do dia-a-dia e faça a travessia dessa dimensão sabendo que é uma grande peça teatral: shakesperiana para uns, de Vaudeville para outros.

Mas falta uma coisa, uma homenagem, um sinal de respeito à ancestralidade noctívaga, um apelo à tradição, uma conclamação aos idos, um toque de reunião a esses guerreiros que habitam outros céus e firmamentos, um convite a tomar umas e outras. Há que se instituir o Dia - ou, talvez, melhor - a Noite dos Boêmios. Em que se homenageie a eles na figura alternada de uns e outros. Que haja como que uma Academia desses deuses larários, e que os convidados deles falem - sem formalismos e falsos cuidados sociais - para o conhecimento, rememoração e exemplo dos que estão hoje sustentando o 'flambeau'.

Um grande abraço, e perdoe a prolixidade.

Walner Spencer



por Alma do Beco | 12:39 AM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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A imagem de fundo é do artista plástico e poeta Eduardo Alexandre©

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