"Brasil já é o 4º colocado no ranking mundial do roubo de obras culturais"
O Estado de São Paulo
Baldo
São Cascudo
Os contadores de histórias precisavam de um padroeiro.
Eis que o Instituto Cultural Aletria elegeu o historiador e folclorista Luís da Câmara Cascudo como protetor da tradição.
A oração de "São Cascudo" faz referências ao mundo das histórias que ele, em vida, tão bem valorizou.
Escreveu mais de 160 livros sobre a cultura brasileira, entre eles o clássico Dicionário do Folclore Brasileiro. Durante mais de cinqüenta anos, Câmara Cascudo foi professor na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Era o único estudioso de sua especialidade que tinha uma visão verdadeiramente nacional do folclore brasileiro.
O lançamento de "São Cascudo" ocorreu no Simpósio Internacional de Contadores de Histórias, realizado no Rio de Janeiro, de 23 a 26 de agosto, mas para receber um "santinho", é só enviar e-mail para aletria@aletria.com.br
Tem coisas nesse mundo que só existem nas memórias do povo mágico das histórias.
Veja a oração abaixo:
“Ajude-me meu São Cascudo,
Que tem coisas nesse mundo
Que só existem nas memórias
Do povo mágico das histórias.
Quero uma lição de Geografia
Que um índio velho contaria
Para uma criança portuguesa
Se fartando com a sobremesa
De pé de moleque e brigadeiro
Junto com um peão boiadeiro.
São Cascudo, me diga o que é
Que vem de noite em um só pé,
E como me livro dessa assombração
Meu Santo Padroeiro da Tradição.
Agora vou me deitar na rede,
Pois eu sei que o Santo entende,
Que amanhã é dia de festança
Vai ter música, aguardente e dança
Pro meu coração enamorado.
Valei-me meu São Cascudo!”
Luis da Câmara Cascudo
* 30/12/1898 + 30/07/1986
Sem tempo
Certa vez, depois de restar inútil ocultar tanto desejo,
aquela mulher me disse: eu tenho idade para ser sua mãe.
Pedi que ela repetisse a mesma frase, mas sem a última palavra.
Ela o fez e eu lhe disse: exatamente.
Então aquela mulher foi minha
como uma mulher deve ser de um homem: sem tempo.
Com todo o tempo.
Antoniel Campos
A HEREGE
O Anjo deu de ombros
E voltou-me as costas.
E talvez por eu estar
Despida de uma aura transparente
Nem de longe apresentasse
Uma réstia, um brilhozinho reluzente,
Não pôde ver em mim qualquer virtude.
Mirou-me com assombro
Angelical - e como se bastasse
Como grande ofensa essa atitude
Fechou-me, sem qualquer pesar,
todas as portas.
Neide de Camargo Dorneles
TATUAGEM
O amor,
no momento,
é como imagem.
O amor ,
eterno,
é uma miragem.
Com a força da paixão,
fica feliz o coração,
tá no peito,
a tatuagem.
A saudade atormenta,
o desejo não aguenta,
a lembrança,
sempre acalma.
E o amor,
muito profundo,
o maior, talvez
do mundo,
é tatuagem na alma.
Chagas Lourenço
Ladrões de galinhas
A noite estava mais escura do que o normal naquele sábado. Grossas nuvens que pareciam querer anunciá-las no mês de agosto passavam rápido. Natal estava fria por causa dos mesmos ventos do mês das cobras, que empurravam as nuvens para longe. Os dois rapazes não pensavam nisso. Já haviam acostumado os olhos à negritude da noite e observavam agachados os movimentos daquela pequena casa em pleno bairro das Rocas, que tinha um grande quintal. Coisa de antigamente, do começo do século XX, quando a cidade não dispunha de muitas coisas e os quintais se alongavam para, também, oferecerem meios de subsistência. Olhavam, pela janela, o casal que assistia televisão enquanto trocavam beijos e carícias; e para o galinheiro, repleto de galinhas gordas.
Pacote, o mais velho, virou-se para Embrulho, que era mais novo e impaciente, e ordenou, sussurrando:
- Vamos esperar que eles entrem no quarto. Pelo jeito, depois de tanto sarro, isso não vai demorar. Fique quieto, como se estivesse morto, viu?
Não demorou e o casal desligou o aparelho de TV e se dirigiu ao quarto. Apagaram a luz da sala e acenderam a do quarto. Beijaram-se novamente e, como se pressentissem a presença de alguém, voltaram a apagar a luz.
- E agora? – choramingou Embrulho.
- Agora, vamos esperar pelos gemidos para pegar as penosas...
Eles não demoraram a encher vários sacos de estopas de galinhas gordas, que fizeram o maior barulho durante o seqüestro, mas que foram abafados pelos gritos de amor, subestimados por Pacote, que esperava apenas gemidos.
Pularam rápido o muro e seguiram em direção à Ribeira, onde pararam numa banca de meio de rua para tomar uma de cachaça para esfriar a emoção. Dentro dos sacos, as galinhas gemiam, e um galo, muito agitado, dava bicadas no grosso pano. Levou uns três cascudos de Embrulho, até se limitar a pequenos cacarejos.
Os dois ladrões de galinha saíram em direção ao Grande Ponto. Subiram pela Juvino Barreto e resolveram cortar caminho pela rua São Tomé, que desemboca no Beco da Lama, onde poderiam tomar mais uma de cana e encontrar, quem sabe, fregueses para as suas “bichinhas”. Durante a caminhada, eles perceberam que foram com “muita sede ao pote”. Haviam roubado muitas galinhas e os dois sacos começavam a pesar inclementemente nas costas dos dois, principalmente durante a subida da rua São Tomé. Chegaram à esquina da prefeitura esbaforidos, suando mais do que “tampa de chaleira”. O efeito da cachaça já havia passado e eles agora podiam avaliar a situação. Tinham uma ruma de galinhas e um galo brabo, mas seria difícil levar tudo para casa, que ficava num sítio nas cercanias do bairro de Igapó.
- Já pensou caminhar até em casa com esse peso todo? Vamos alugar um carro de praça? – Disse Embrulho.
Pacote, que era o chefe da dupla, respondeu:
- Só se a gente vendesse umas duas galinhas, mas uma hora desta está todo mundo biritado e ninguém vai querer uma penosa. Pode querer daquelas outras “galinhas”... Nenão? Vamos embora assim mesmo...
Enfrentaram o pequeno declive da rua Vigário Bartolomeu e dobraram à direita na rua Coronel Cascudo, passando pela frente do Bar de Nazaré. Lá, apenas um bêbado notou a passagem dos dois, que também carregavam cacarejos, como um carro de som surrealista, e gritou:
- Essas galinhas dormiram aonde?
- Pacote, mais discreto, não disse nada. Pelo contrário, até apressou o passo. Mas Embrulho, mais esquentado, deixou ficar bem pertinho do “Chorinho de Camilo”, para se virar e estirar o dedo. Um dedo sujo, enorme e indecente. Mas a turma do chorinho nem notou, acostumada com atritos maiores.
Quando chegaram ao estacionamento lateral da assembléia, Pacote parou e mandou Embrulho pegar duas doses de cachaça num bar. Ficou pensando no que fazer. Podia diminuir o peso do roubo soltando algumas galinhas, mas aí ia ficar no prejuízo, depois de tanto esforço. Não sabia o que fazer até notar o carro de Eduardo Alexandre (Dunga), parado bem direitinho ao lado do Museu Café Filho. Abriu um sorriso de poucos dentes, que chamou a atenção de Embrulho, que ia chegando com as duas canas e umas lascas de goiaba.
- Está rindo de quê?
- Acho que resolvi o problema do transporte... Vamos roubar aquele Santana velho, meter as galinhas dentro e fazer carreira para casa!
- Mas Pacote, – Embrulho fez cara de entendido – aquele carro deve estar abandonado, parado ai há muito tempo. Veja o estado dele...
- Está não! Botei a mão na tampa do motor e ainda estava quente. Vamos embora que eu sei fazer a ligação direta. Aprendi vendo um filme...
Embrulho ainda argumentou que era melhor roubar um carro novo, que não apresentasse problemas mecânicos, mas Pacote era muito inteligente.
-Meu filho, - disse ensaiando estar muito calmo – qual é o carro daqui, novinho, que ficaria bem cheio de galinhas? Nesse aí, que já parece um galinheiro, daremos a impressão de estarmos indo vender as penosas na feira. Entendeu, meu filho? Entendeu?!
Pacote era foda, pensava em tudo. Resignou-se Embrulho, satisfeito.
Não foi difícil roubar o carro de Dunga, que somente abria a porta do motorista. Eles descobriram logo. Depois viram que os vidros não baixavam e que precisava ter cuidado com o buraco que tinha no chão do carona. Colocaram os sacos de galinhas no banco traseiro e deixaram o Santana escorregar, devagarzinho, sem ligar, em direção à rua da Conceição. Ninguém notou, porque Dunga costuma fazer a mesma coisa para o “bicho” pegar no tranco defronte da Assembléia Legislativa, para desespero do guarda que, todas as vezes, acorda com o barulho da descarga em ruínas.
Quando o carro pegou, Pacote tentou tirar da segunda para a terceira marcha, começou a descobrir que no carro do poeta somente funcionam a segunda, a quarta e a ré. Descobriu, também, que o acelerador estava enganchado (está assim desde o veraneio de 1992, na Redinha – Dunga já havia me confidenciado) e que teria que controlar a velocidade por meio da embreagem. Quase desceu na contramão em direção à Ribeira, mas conseguiu fazer uma curva fechada, entrando na rua Ulisses Caldas em alta velocidade, cantando pneus. O prefeito Carlos Eduardo estava atravessando a rua para pegar o seu carro, estacionado defronte à garagem da Assembléia Legislativa, e teve que se apressar para não ser atropelado.
- Eduardo Alexandre está com a gota hoje! Quase me mata de susto. Lembre-me para eu mandar a STTU prender aquele carro segunda-feira. E essas penas todas voando? O que será?
O auxiliar, homem perspicaz e conhecedor dos eventos culturais promovidos pelo poeta no Beco da Lama, respondeu:
- É bem capaz dele já estar providenciando as fantasias para o Carnaval do Centro Histórico. Daqui a pouco, chega por aqui, pedindo dinheiro para pagar as bandas...
Leonardo Sodré