ALMA DE BECO, DE BEBO, DO BELO
Sérgio Vilar
Às vezes penso em território boêmio como proibido. Ali, repousam almas sedentas. E o leque de desejos é amparado pela ânsia. Assusta.
No Beco da Lama é diferente. Sempre foi. É chão escorregadio, sim. Mas cabe todo mundo. E freqüentam quase todos. Quase todos os de alma libertária. É como na vila da Redinha: o gosto pelas coisas simples se faz necessário para sentar, beber e prosear.
E das prosas brotam histórias e estórias, como as contadas pelo jornalista Leonardo Sodré, sob olhar capcioso de Dunga.
Contações de um beco-confraria; de um beco-praça; de um beco-cantão. Parágrafos de líderes livres despidos em palavras.
E quem são esses loucos? Os amantes da arte e da cultura mais genuinamente marginal. Os poetas errantes e certeiros de palavra, estrofes e sonetos. São os de vozes ecoadas dentro da redoma do beco e espalhadas aqui e ali. Vozes desejosas de gritos mais altos e outros que sequer sabem que são ouvidos. Nem fazem questão.
O Beco da Lama é beco sem vontade de avenida e de alma enlameada pelo perfume da província. Cabe ao curioso filtrar a astúcia e se adaptar à realidade daquela atmosfera.
Há um convite inconteste no ar. Quase um chamamento.
Claro, há o perigo. E não vem da sisudez de Helmut. Uma vez do beco, os contornos da cidade modificam. Aquela eterna espera por grandes novidades, herdada da Segunda Grande Guerra, quando os americanos chacoalharam a cidade, se esvai.
O amante do beco se volta às novidades dos arredores. A cena cultural da cidade ascende. O CentroHistórico despe-se do cinza e ganha cores. E a medida em que se é tragado pela alma do beco, uma sinfonia começa a tornar-se audível, vinda lá das funduras do Potengi.
É quando o curioso olha para os lados e grita: viva a liberdade! Salve o beco-boemia!
“O nosso amor é tão bonito...
Leonardo Sodré
...ela finge que me ama e eu finjo que acredito”. A música, cantada numa filmagem do canal 66 sobre o eterno mangueirense Jamelão, em homenagem aos seus 90 anos, reduz a poesia a alguns comportamentos. Ou direi, a maioria dos comportamentos hodiernos.
Quando eu era pequeno vi muitas vezes meu pai reclamar da época em que nasci. Para ele, meu tempo era o tempo da materialidade, do não romantismo, da falta de amor, onde o sexo era mais valorizado do que as paixões. Nunca disse que o pai dele havia reclamado do seu próprio tempo, mas é provável que também tivesse feito o mesmo. Mas, o tempo dele, se bem me lembro, era realmente de romantismo. E agora, logo eu, que pensava ser moderno, reclamo de uma época em que falta romantismo.
Mas, e essa música? Quando foi feita? Ela retrata bem o tempo atual, onde o amor está mais para o ter do que para o querer. Se ela finge que me ama e eu finjo que acredito, nós não nos amamos. Ou amamos?
Passa o fingimento a ter uma importância impar nas relações. Melhor seria eu ser apenas um torturador de corações? Alguém que o amor fosse intransponível? Um aço, quem sabe, inoxidável, às emoções?
Mas, “o nosso é tão bonito”... Será?
E agora, me diga você: onde está o bonito? Na mentira, no desengano. Na falta do amor?
Ora, o autor, diante de sua sabedoria, quem sabe defronte a um espelho ,foi cruel consigo mesmo. Menos na melodia. E retratou bem o que nenhum coração consegue controlar. Afinal, quem manda no coração?
Se eu te amo, amo incansavelmente, sem reservas, amo, porque te amo. Sem fingimento, sem tortura, sem te trair. Amo porque você é meu amor, e o nosso amor é tão bonito...