quarta-feira, dezembro 26, 2007

FORÇA MAIOR

Marcus Ottoni

"Cappio não é um ingênuo e nem um fundamentalista. Todos o consideram um homem de fé que tem 40 anos dedicados aos mais pobres e a estudar o rio São Francisco, símbolo para ele da vida que oferece água aos camponeses ribeirinhos, e cujos 2,8 mil km percorreu durante um ano junto com um sociólogo e um agricultor para, em seguida, escrever um livro."
El País


entre tantas lutas que você curta
às vezes curtas
às vezes brutas
todas elas tantas lutas
mesmo que seja um bode que voce chuta
ou aquele colírio que parece uma gruta
saiba que o amor ainda surta
mesmo para o mais podre filho da puta
e que Deus não é uma marca que multa
aqui, ali, em baixo, por cima da disputa
queira que a mais doce arte, tão culta
abençoe teus beijos, abraços e todas as frutas
e mesmo que chore, repita e durma de forma tão abrupta
uma força maior do que tudo, está acima do que você pensa que é fajuta

Carlos Gurgel


FIO DE ARIADNE, CRISTAL DE LUA, POESIA FEITO CARLOS

Marcílio Farias

“Os romanos, em geral, confiam apenas na força para a realização de seus projetos, e pensam que é um dever nacional finalizar suas empreitadas, apesar dos protestos do mundo. E mais ainda, acham que nada se lhes é impossível, uma vez que põem na cabeça uma idéia louca qualquer.” (Polibius)

O poeta desfia e desfaz a linguagem do poder. Ele nos entrega, cru e nu, o veio nervoso e exposto da linguagem que toca no invisível ponto onde emoção e razão se abraçam, permitindo que o código íntimo da nossa humanicidade se revele – e ensine, desvele, ilumine.

A poesia contemporânea serve mais do que nunca à linguagem do fascismo corporativista, cheio de meias e duplas palavras, cômodo restolho e repouso de mentes conformistas e conformadas. Linguagem feita de escombros e esqueletos apodrecidos, código morto como a linguagem de um Ocidente prostituído até a alma em nome da ganância, do petróleo, da guerra e do medo.

Quando Gurgel lançou, há mais de trinta anos, o seu primeiro trabalho (Pulsações), foi como se o Mar Vermelho se abrisse deixando passar um forte feixe de assombrosas iluminações, tal qual Rimbaud, que, duzentos anos antes, desmantelara as platonices dos simbolistas, românticos e tantos outros bajuladores dos governos e das sociedades que subservientemente lambuzavam com sentenças cheirando a morte, mofo e indolência.

Hoje, em plena era da nova Pré-Historia fascista, antevista por Pasolini, Battaille e Barthes, leio com emoção o novo trabalho daquele a quem sempre considerei e considero a voz mais importante da poesia do meu século. “Apaixonada Poesia Louca” (Edições Fundação José Augusto, 2002) nos dá a voz veemente, vibrante e tranqüila de um poeta para quem ‘poetizar’ e ser são um só e o mesmo.

Thomas Merton nos alertou há quase meio século para a importância do poeta, do verdadeiro poeta, como o único capaz de sentir e reagir contra o que ele chamou de “doença fascista da linguagem do Ocidente”, a qual, desde a formação do Sacro Império Romano Germânico, infectou com duplicidade e mentiras o universo do dizer desse Ocidente.

O poeta, o verdadeiro poeta, seria aquele que, mais do que antena de sua raça (a raça poética), seria o verdadeiro guerreiro do conhecimento estético, o homem estético de Schelling, o qual, em seu trabalho quase monástico de contemplação ativa do mundo, dar-nos-ia as boas palavras, as palavras reais vinculadas a uma profunda interação/integração entre homem e mundo.

Gurgel sempre foi esse tipo de guerreiro. Sempre foi o nosso poeta “maior”. Este livro mais recente que agora leio prova e comprova a assertiva de Merton.

Como o não-dizer do Vaygharava tântrico ou o Swastiasta védico, o texto de Carlos continua simples em sua enigmaticidade. Palavra tão simples, tão cristalina, que o mistério daquela dimensão vertical (Maritain) da existência nos toma de assalto por uma pura obra de circunstância do belo. Mas não o belo dos poetas de fim-de-semana, os quais usam artifícios lingüísticos para incensar os próprios egos e se atrevem a chamá-los de poesia. Não: a simplicidade (e complexidade) do signo gurgeliano carrega uma vertente ontológica irredutível a formulações. Cristal de lua.

“Incólume

Como picolé ao sol

Os pecados têm vida longa

Eles se sustentam

Ao redor de nossos sonhos juvenis” (pg. 25)

Quando Bataille nos lembrou (há quase um século) que a transgressão é o caminho mais óbvio na luta contra a ignorância do nosso trágico Ocidente, ele poderia muito bem ter utilizado como exemplo esse texto de Carlos:

“Brincar com fogo

é como ajuizar pecados mortais” (pg. 35)

Mas o poeta, cuja poesis consolida nesse novo opus uma serenidade antevista em seus primeiros trabalhos, não se acomoda na firmeza e consistência de sua artesania incomparável: ele continua trabalhando e esfoliando verbo e dizer, escavando e espremendo signo e significado, torcendo-o e torturando-o, porque sabe que nossa linguagem ocidental está prenhe de toda uma contextura fascista, opressora, negativa e negadora de si e do homem que a utiliza. O verdadeiro poeta, como Carlos, jamais consentirá com esse processo.

“Burros gemem no meio da noite

No meio da cidade do meio da noite

Burros gemem no meio da cidade

No meio dos burros a cidade geme

No meio da cidade no meio da noite

A cidade geme no meio dos burros” (pág. 96)

Ao parodiar uma forma ‘escritural’ (iâmbico-pentamétrica que atrasou a poesia do ocidente em mais de 100 anos e foi salva no século passado por Eliot e Pound), Carlos se dá ao luxo de ‘desmantelar’ a estrutura sem propor nada mais que a própria transgressão de seu intento trans-(não ‘meta’)-lingüístico. Considero o poema acima como um dos mais importantes momentos da poesia de nosso tempo. Lembrando Bataille mais uma vez, Gurgel nos leva a contemplar ativamente o fato lingüístico através do puro olhar da frase provocante, insidiante, transgressora.

Não me admira o fato de Carlos jamais ter recebido o reconhecimento nacional e internacional que merece. Natal sempre foi avessa e cruel com seus artistas, justificando aquela frase crítica de ninguém é profeta em sua própria terra.

Mas me irrita o fato da cidade (que, ao que parece, dá mais valor a uma centena de estrangeiros e mafiosos pseudo-milionários do que aos seus poetas, pintores e músicos —qual o justo reconhecimento que Eduardo Alexandre de Amorim Garcia teve pela ousadia transgressora da Galeria do Povo?) ainda não ter atentado para o fato de ter em seu meio um “inventor” de formulações poéticas inigualáveis, que, aos 13 anos de idade, antecedia movimentos poéticos que o sul do país (via Chacal, Ronaldo Bastos, Chico Alvim e tantos outros cariocas hoje em dia louvados em todo o pais como ‘inovadores’) só iria reconhecer no final dos anos 70.

Isso me irrita pois mais uma vez prova o que Mário de Andrade já dizia a Peregrino Junior em 1929, entre um uísque e outro, na Rua do Ouvidor: ‘Junior, o que estraga esse pais não e’ a cachaça mas a burrice”.

Na era da globalização da estupidez e da internacionalização fascista do medo; na era da linguagem ideologizada e ideologizante do medíocre e do superficial, a poesia de Carlos espalha uma sanidade que o mundo só conheceu com Rimbaud, Lautreamont, Bataille, Pasolini e Barthes. Uma sanidade que nos dá o visível da existência através do não-visivel do sentido e do significado. Fio de Ariadne reconstruído com a vida vivida por e para a disponibilidade poética, labirinto de sensações e sentimentos que só um poeta maior pode ser capaz de construir e navegar serenamente.

“O sol quando se Poe

Amanhece cedo

Depois

Quando vem a gritaria do mundo

Ele se esconde” (pg. 97)

por Alma do Beco | 3:08 AM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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