junho 23 0:50
deve haver algo de bruma de neblina
na fumaça que esvoaça das fogueiras
algum sol e uma miríade de estrelas
nos fogos de artifícios e nos balões
deve haver mais que alegria nos baiões
e um sentir de antiguidade nas janelas
sem cortinas enfeitadas com bandeiras
jornais velhos coloridos de anilina
no sorriso das moças namoradeiras
nos rapazes recendendo a brilhantina
e na dança que se dança em cada esquina
deve haver mais que alegria e brincadeiras
e ecoando pela noite das cidades
mil zabumbas mil sanfonas mil saudades
Márcia Maia
NHENCIARA, A MAIS FERMOSA DOS POTIGUARES
Os cabelos de Graziela, finos, dourados, cativos de sua cabeça, embora ao vento... lembram... aqui na margem destas terras... lembram... ia iniciar um pensamento, do que Graziela lembrava.
Assim, cabelos esvoaçando, figura de Nhenciara. Agora, hoje, daqui a pouco passado, olhando uma baleia passante, que todos gritaram pra eu olhar, uma monstra, como Cícero-Boga agarrou meus braços num chamamento. Reparei que ele estava sofrido de algum motivo. Me puxou no rumo de a gente ficar sozinho, até que na hora que a baleia voltou à tona, todos reparando nela, ele levantou o estrado do porão e desceu atrás de mim a escada e cobriu de novo o estrado. Lá em cima, eram umas garras me apertando. Nos dedos dele não havia aquela forma de amar que eu conhecia. Nem esperou eu tirar o vestido e ficar olhando de longe até me chamar putinha dez vezes, como ele se acriança de fazer, e eu andar na ponta dos pés pra ele gostar mais da antecipação. Era mesmo um doido se jogando em mim, que eu desconheci ele pra fugir e não tinha saída, faminto, faminto, descontrolado mesmo, e não se cansou de me querer muitas vezes.
Capitão Lúcio lembra-se, lembra sim... figura de Nhenciara, mulher como Graziela...
Ali, naquela enseada por onde há pouco passamos, às margens do rio Apodi, num pouco que é pouco mais que o tempo desta viagem, na origem das criaturas que aqui estão, a maldição de Nhenciara. O sangue dela está lá na areia que o mar não limpou, do povo dos potiguares, senhores destas bandas, quando aqui chegou o estrangeiro.
Nhenciara, a bela, a mais bela do povo dos potiguares, reservada, por ser a mais fermosa, assi assi, para a engorda do suplício dos cativos. Pera que cuando lhe se dava aos gentios cativar um estrangeiro, consta de sua justiça o manter cativo numa taba, atado como um touro com cordas de algodão, de pernas e de punhos, e em redor da taba as velhas lhe cantam que se farte de ver o sol, pois num breve perderá de lho ver.
E ao dia primeiro do suplício reservam a o estrangeiro a mais fermosa moça que há no povo da casa, a qual tem por dever regalar seu corpo com o corpo dela e lhe dar do alimento até que os velhos o tenham ao cativo como engordado pera o saboreio de ser comido em festa, entre danças donde, em morrendo o cativo com o golpe do matador, com feras settas, as velhas o despedaçam e lhe tiram as tripas e fressuras que mal lavadas cozem para comer e repartem-se as carnes por algûas casas e hóspedes que hã chegado pera a festa da matança e della comem assada e cozida, e do pouco que guardam, muito assada, a que se chama moquém, pera mais depois renovarem o seu ódio e darem logar a outras festas, até que a presença do cativo estrangeiro se há afastado da lembrança de todos os de aquella casa do povo dos potiguares.
Do brigue que fundeou naquella enseada, o capitão-mor foi cativo e se prepararam as festas numa das casas potiguares e Nhenciara logo entregue aos encômios do cativo com o dever de regalar seu corpo, e morto este, banqueteado entre os hóspedes e transformado em moquém pera festas futuras, Nhenciara guardou no ventre um filho do cativo.
Como as outras mais fermosas de outras casas, tinha por seu dever entregar o filho que nascesse do cativo a um parente mais próximo pera que este o matasse e a mãe seria a primeira a repartir suas carnes e de a ele guardar também fero e cego ódio. Mas Nhenciara escondeu o filho nas matas, porque o queria e lhe guardava amor, a despeito de ser filho de cativo estrangeiro.
Vinte frecheiros a perseguiram e ao seu filho no colo, e na foz do Apodi esquartejaram a os dois.
Nhenciara, a mais fermosa da casa dos potiguares, vendo o sangue seu e do filho cair no encontro das águas do rio e do mar, amaldiçoou seu povo, que seria, por tã cego error, também cativo e todo o sangue dos potiguares desceria o rio e mancharia o mar...
... Graziela, a que se deu a Bernardo, a que se deu a Cícero-Boga... Nhenciara se dava aos que morriam.
Os vultos de Nhenciara e de Graziela se fundem no espelho do sextante. Lúcio tem a idade das duas épocas e diminui o ângulo para as aproximar e a elas se misturam os gritos do cativo estrangeiro e os de Cícero-Boga, atravessando a noite e espargidos pelo vento.
Moacir C. Lopes
In, Belona, latitude noite, 1968,
romance a ser reeditado, na 3ª edição, em 2006.
A Serenata de Otoniel
Existem várias versões acerca da origem da modinha mais difundida no Nordeste e mais cantada nas serenatas potiguares. Trata-se da composição intitulada "A serenata do pescador", nome original, mas que o povo, com o seu poder mágico de transformar as coisas, denomina apenas de "Praieira", de Otoniel...
De todas as versões que correm, registramos a mais atualizada, ou seja, a própria palavra do autor do poema, quando de uma enquete promovida pelo folclorista Veríssimo de Melo, nas colunas de " A República", em 1958.
Dizia Otoniel Meneses:
- Em 1923, eu era remador e orador do "Sport Clube de Natal". Ao se aproximar o regresso dos pescadores que fizeram o "raid" de Natal ao Rio de Janeiro, em jangadas, pediram-me para escrever um discurso de saudação e uns versos alusivos ao acontecimento. Escrevi logo o discurso. Mas os versos deram-me maior trabalho. Passei uma semana toda acordado, escrevendo-os. Imaginei um pescador que voltava de viagem, cantando uma serenata à porta da namorada. No dia seguinte - era o dia da solenidade - reli os versos e achei-os "frios". Não gostei. É tanto que fiz o discurso e não tive coragem de declamar os versos. Dei o título de "A serenata do pescador", mas o povo preferiu mudá-lo para "Praieira", aproveitando a primeira palavra da estrofe inicial.
Como viram, o autor contou a história verdadeira, tantas vezes escutadas nas tertúlias, na casa do pai do autor de Trovadores Potiguares, musicata e sebenteiro Gabriel Saraiva, um dos maiores amigos (e até compadre), do poeta Otoniel Meneses.
Composto o poema, Otoniel Meneses andou mostrando-o a seus colegas, que achavam uma jóia da poesia. Todos eram unânimes em que o poema fosse musicado. Foi quando surgiu o poeta Bezerra Júnior, que lhe apresentou o violonista Eduardo Medeiros, clarinetista de primeira grandeza e um dos tocadores de violão, por música, na época em que surgiu " Praieira". Posta a música por Eduardo Medeiros, a célebre canção natalense foi cantada, oficialmente, pela primeira vez, em dezembro de 1923, no teatro "Carlos Gomes", pela voz deliciosa de Deolindo Lima, uma das figuras de maior projeção nos meios artísticos de Natal antiga.
Recordaremos aqui que, tanto o poeta Otoniel Meneses, quanto o compositor Eduardo Medeiros, foram dois perfeitos seresteiros do passado. Com eles, tomamos parte em várias serenatas e reuniões sociais, nas residências daqueles que apreciam uma bonita voz, ao som do violão e violino dos irmãos Carolino, de Israel Botelho e de tantos outros amantes da " causa" do pinho...
Nas serestas dos nossos dias, ou seja, nos dias atuais, mesmo com toda a transformação do mundo, " Praieira" continua a ser cantada, aplaudida e exaltada pela musicalidade de sua extensão artística, notadamente por um "trio" que está ficando célebre nas atuais noitadas artísticas da cidade. É o trio composto por José Maux Júnior, Jaime dos Guimarães Wanderley e Evaristo de Sousa, as três vozes mais agudas da cidade.
Há pouco, o "Coral Municipal de Natal" estilizou a simpática canção de Otoniel Meneses e por gosto se pode ouvir a " Praieira" no ritmo de coral, em quatro vozes. É um espetáculo que emociona e que enche de grandeza aquele de quem já se dissera que, apesar do ostracismo em que vive, não deve nada a terra potiguar, mas o Rio Grande do Norte lhe deve tudo...
Gumercindo Saraiva