"Os séculos não apagaram o horror. A voz das vítimas da histeria da opinião pública e da vaidade dos inquisidores ainda pode ser ouvida clamando justiça."
Cid Augusto
preâmbulo
No dizer de Mário Faustino,
poeta deve sentir na pele a necessidade de experimentar!
Cabe as indagações do Jomar Muniz de Brito:
Onde encontrar as fendas, brechas e mínimos territórios livres?
Onde estão as linhas desse papel?... Os traços do pincel? ...
os riscos de algum pensamento? ... As marcas de qualquer sentimento?...
As linhagens da inútil beleza?
Até que ponto e vírgula será preciso identificar ícones, índices,
símbolos, maneirismos, escolas, influências, diferenças através de rótulos?
Até que ponto de interrogação será impreciso
delimitar raízes radicais, rupturas, raridades?
No "ABC da Literatura", Erza Pound introduz os conceitos:
Logopéia, Fanopéia e Melopéia
.
No presente, a labuta é exercitar todas as nuances da palavra: verbi-voco-visual.
Em quatro movimentos,
Panaroma no Kaos - um extudo da poética
-
funda-se com logopéicos poemas curtos, "humor/rumor",
insights filosóficos, pseudos Hai-Kais.
Na busca do biscoito fino oswaldiano, comprimidos de poesias,
não para a massa, mas para iniciados.
Onde o leitor, interlocutor interativo,
atribuirá sentido através do próprio logos,
transcriando-os, mediante sua singular cognição.
Num segundo instante,
a experiência se dá no imbricamento "Fanopéico".
Seguindo a tradição estética potiguar, poemas visuais,
repondo a processualidade concreta destas paragens,
da "Rede Suspensa" do Jorge Fernandes aos processos do
Dailor, Anchieta, Nei Leandro, Falves, Jota, A. de Araújo,
desembocando no seio da poesia-invenção.
No limiar "Melopéico", rebuscamos a linearidade do alfabetofício.
Uma leitura, uma grafia, dos espaços imagéticos da Cidade do Prazer híbrida: musa e puta da inspiração cotidiana.
O habitat revisitado como útero primogênito.
Identidade com o chão, nativismo de Itajubá, Manuel Dantas, Othoniel Menezes...
Concluindo,
Pauta Ulterior converge a pseudos ensaios
publicados nos jornais da Província.
(Re)leituras antropológicas, denotadas em antropofágicos textos,
deglutidos num sublime caso de amor (como diria Jomar Muniz de Brito): Antônio de Melo e Souza, Manuel Dantas, Ruben Alves, Niesztche,
Chauí, José Martins de Souza, Eli Celso, Erza Pound, Platão, Cascudo...
Contextualizações históricas e dialeticamente histéricas,
angulações do simulacro polético do estado.
Abordagens ensandecidas sobre a totalidade:
produção, distribuição e consumo do fazer artístico, e
as interfaces da cultura com: a educação, o território, a arte,
o meio ambiente, a política, a economia, tecnologia
turismo (e sustentabilidade do lugar)...
Por derradeiro,
há vinte anos sem se lançar na aventura de um livro,
o medo inaudito do ridículo relevou o tempo,
eis Panaroma no Kaos, um bibelô poético que
instiga o tênue limite entre o ser (ou não ser) poesia, e,
concomitantemente, celebra a tal Poesia em
todas as (im)possibilidades da palavra escrita, olhada, tateada, sacramentada,
e nas entrelinhas: esculpida, esbravejada, sacada, lavrada, escancarada.
Plínio Sanderson
AS BRUXAS DE SALEM
Dez anos depois de haver assistido ao "As Bruxas de Salem", no cinema, tenho a impressão de estar vivenciando a versão brasileira contemporânea da História ocorrida no século XVII, em Salem, vilarejo americano situado em Massachusetts, que inspirou a peça de Arthur Miller, em 1955, e o filme dirigido por Nicholas Hytner, em 1996, protagonizado por Daniel Day-Lewis e Winona Ryder.
A confusão começou quando o médico da localidade, sem condições de diagnosticar a doença da filha do reverendo, disse ao pai que o caso era de feitiçaria. Amigas da criança também entraram em parafuso, apresentando os mesmos sintomas. Elas rogavam pragas, babavam, debatiam-se, rosnavam, até os habitantes da vila, crentes na presença de satanás, cobrarem providências da Igreja.
Convocou-se então o caçador de feiticeiras para quem as garotas afirmaram haver participado de rituais mágicos induzidas por uma escrava. As mentiras eram fortes e levaram a Inquisição a se instalar em Salem. Na esperança do benefício hoje conhecido como delação premiada, a escrava assumiu a prática de vodu e acusou outras pessoas de serem suas comparsas. As meninas doidas, idem.
Gente suja aproveitou a ocasião para se vingar dos inimigos, denunciando-os pelo crime de adoração ao demônio. De repente, quase todos eram suspeitos tragados pela onda denuncista. De junho a outubro de 1862, o tribunal formado por três magistrados ouviu cerca de 300 supostos envolvidos com bruxaria e, usando o nome de Deus, determinou a execução de 20 deles, incluindo um cachorrinho.
Em meio ao morticínio, Thomas Brattle escreveu a carta considerada o primeiro texto iluminista americano, na qual se pode ler: "Temo que os anos não apagarão esta desgraça, esta nódoa que essas coisas lançaram sobre nossa terra". De fato, os séculos não apagaram o horror. A voz das vítimas da histeria da opinião pública e da vaidade dos inquisidores ainda pode ser ouvida clamando justiça.
O noticiário dos últimos meses remete-me a Salem. Enxergo supostos indícios transformados em provas definitivas contra pessoas de bem, especulações travestidas de verdade absoluta destruindo reputações, homens e mulheres condenados à lama sem qualquer chance de defesa. Pior, essa nova caçada às bruxas, que já fez vítimas inocentes e heróis sem o menor caráter, está somente começando.
Cid Augusto
Professor Napoleão - III
A Atlântida foi o assunto do dia, todos levando para outros colegas, de outras turmas, a curiosidade do debate travado com o novato professor barrigudinho, baixinho, careca, que demonstrava tornar atraente uma aula besta de História, agora, para todos nós, com H maiúsculo, e cheia de curiosidades.
O professor Napoleão realmente havia cativado a simpatia de todos, e, como que magnetizados, todos tomamos os livros de História Geral e História do Brasil e começamos a ler. Aquela aula realmente nos fizera ver a disciplina com outros olhos. Todos queriam assistir a próxima aula do professor barrigudinho, com cara de palhaço, com careca de palhaço, mas com um jeito sério de encarar uma aula.
Eu passei a tarde mergulhado em História do Brasil. Iria perguntar, na próxima aula, sobre as coisas do Rio Grande do Norte, como fora a colonização do nosso Estado. Será que eu seria um dos escolhidos nas respostas daquele professor? Com certeza ele seria bombardeado por perguntas sobre todos os temas, do passado e, quem sabe, do futuro, o que especularia o professor Napoleão sobre o futuro? Especularia, sim, porque futuro é futuro, não se pode prever. O que será que ele responderá quando perguntado pelo nosso futuro, o futuro do nosso planeta, do nosso sistema solar, o futuro do Universo?
Ah, aquilo estava começando a ficar interessante. Nunca, na minha vida, tive tanta vontade de assistir uma aula.
Dormi sonhando com o Egito antigo, milhares de homens construindo pirâmides fantásticas para os faraós. Mas, como eram estranhos! Tinham olhos puxados, cabelos negros, eram pequeninos. Não seriam eles atlantis?
As aulas do dia seguinte foram difíceis de segurar. O professor Napoleão, com seu jeito simples, parece enfeitiçara toda a turma. Ninguém estava a fim de assistir outra aula, só a de História, com H maiúsculo, e os professores, por mais que fizessem, não conseguiam controlar a nossa impaciência.
O professor Napoleão havia dado aulas em outras turmas e já se constituía num fenômeno nunca visto na escola. O diretor teve que comparecer a algumas salas, solicitando o cumprimento da disciplina, mas de nada adiantavam apelos e ameaças. As turmas que ainda não tinham tido o privilégio de assistir a aula do professor revolucionário estavam em expectativa, ansiosas. Quando ele terminava o seu trabalho era sempre a mesma coisa, aquelas reuniões por todos os lugares do colégio, todos interessados nas opiniões dos colegas.
Todos já havíamos percebido que o professor Napoleão não dava aulas iguais, como os outros professores. Parece que puxava qualquer assunto e aí encaminhava a conversa para uma interpretação histórica, tendo tratado dos mais variados assuntos, até de astronomia, quando alguém perguntou sobre o futuro da terra.
Marcos, da 8ª D, me contou que nessa aula ele havia dito que a terra tinha data para acabar, só não podia dizer quando. E que, muito antes disso, a humanidade não mais existiria, estaria extinta há milhares e milhares de anos. Ele disse que, com a extinção da humanidade, aí, sim, a História teria fim, e teria corrigido logo adiante para dizer que se houvesse extraterrestres inteligentes e se eles escrevessem sua história, e se eles chegassem a Terra, aí a nossa História poderia até ser reescrita, o que seria muito interessante, pois os historiadores que fizessem esse trabalho iriam nos olhar de uma maneira bem diferente, bem especial, mas que ele não saberia especificar como.
© Eduardo Alexandre