"O candidato Lula de 2006 não tem nada de mito, nem de promessas."
Eliane Cantanhêde
Ilustração: Léo Sodré Foto: Hugo Macedo
Eixo
Na distância
de dois corpos
compreensão absoluta,
atritos inexistentes,
virtuais encontros
Perfeitos, solúveis,
Ilimitados de saudades,
virtuais…
Deborah Milgram
Teus seios fartos, querida;
lindos e maravilhosos,
que nem pêssego, por fora,
aveludados, sedosos;
deixam-me aceso, à espreita,
têm a medida perfeita,
para os meus lábios gulosos...
Bob Motta
PONTE JERÔNIMO DE ALBUQUERQUE MARANHÃO
Conversava essa semana com Aroldo Martins, colega dos tempos de Marista e escritor do melhor e sintético calibre.
Aroldo escreve sobre Natal, sua história e causos, sua gente.
E ele, em seu grande amor pelas nossas dunas e mangabeirais, sentenciava:
- Não existe uma avenida, rua, beco, qualquer logradouro em Natal que homenageie o fundador da cidade.
E sugeriu que a ponte Forte/Redinha recebesse o nome de Jerônimo de Albuquerque Maranhão.
Não sei se falta a homenagem ao fundador. Se há, deve ser tão pífia que não chega ao conhecimento do cidadão natalense.
Escrevo essa nota para firmar a sugestão do amigo. Concordo com ele.
Seria uma forma de chamar para a História o cartão postal que breve estará caracterizando a cidade.
Ponte Jerônimo de Albuquerque Maranhão, uma justa homenagem ao esquecido fundador da cidade do Natal.
Eduardo Alexandre
A Manga e o Sal
Na minha infância, quando morava na rua que leva o nome do poeta Segundo Wanderley, no Barro Vermelho, onde ainda hoje habitam os meus pais, uma das minhas maiores realizações era subir na frondosa, centenária e, até então, surpreendentemente produtiva mangueira que ficava no extenso quintal.
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Aquela mangueira, com suas belas e rosadas mangas, era o playground da minha infância. No seu topo eu passava tardes e manhãs (à noite, como uma caverna, a árvore era habitada por felizes morcegos), aventurando-me, como num filme de Tarzan, escalando as alturas arriscadas, colhendo e largando os frutos pesados e doces que desabavam por entre as folhas longas e lustrosas e os galhos esverdeados, produzindo um som sibilante peculiar até o barulho retumbante da queda. A queda, que eu mesmo experimentei um dia e que causou um dos maiores sustos que minha mãe já teve na vida: o filho prostrado no chão, de bruços, próximo a um ciscador com as pontas de ferro oxidado viradas para cima. Foi só o susto do baque. Nenhum órgão ou osso avariado. O trauma, no entanto, fez com que eu demorasse a voltar aos galhos daquela árvore.
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Essa queda, a primeira forte, símbolo de outras que viriam na minha existência, também experimentou meu irmão mais velho, Jansênio, maior expressão de aventureiro – e eu buscava imitá-lo – que se apresentava na época. Caiu de uma altura maior, mas, como eu, não chegou a quebrar osso, para alívio momentâneo de todos, pois as incursões à nave da mangueira voltavam a se repetir pouco tempo depois.
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Certo dia daquela época, esse mesmo irmão, revoltado temporariamente com uma negativa paterna de alguns dinheirinhos, decidiu dar o troco das moedas que não recebeu, preparando a cena: subiu até o ponto mais alto, ali onde os galhos se retorciam – ciosos de não poderem mais crescer – e ameaçava se jogar. Papai, à porta, dizia que iria chamar os bombeiros. Eu ria, incrédulo da cena. Lembro-me que o único efeito doloroso disso tudo foi um grande galo na minha cabeça, realizado pela mão paterna, que, fechada, rápida e certeira, atingiu meu cocuruto na hora em que me esbaldava no riso.
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Na mangueira subiu também uma vez o meu irmão Janair que logrou realizar um dos maiores dramas da minha infância, quando, aos berros que se ouviam em quase todo o Barro Vermelho – da Jaguarari até a Olinto Meira, da Segundo Wanderley até a Meira e Sá – se desesperava, afirmando que as abelhas estavam o atacando. A cena era patética e assustadora. Hoje, graças a Deus, somente risível. Meu irmão, longilíneo como sempre foi, preparava-se para saltar, de pé sobre um galho forte. Um dos outros manos estava sob a mangueira, com os braços abertos, aguardando o tombo, como se pudesse segurar aquele varapau que perigava se precipitar lá de cima. Até que a coragem apareceu (ou a platéia) e o que estava trepado desceu, aos gritos e choros, ralando-se todo pelo tronco espesso e verrugoso da árvore fantástica.
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Não me lembro de minha irmã Jaiana, ou o meu irmão Jaime, terem se arriscado nos braços daquela planta majestosa. Preferiam o perfume e o sabor dos frutos carnudos, fibrosos e suculentos, debaixo da bela e agradável sombra (que nos períodos de entressafras – porque não corríamos o risco de termos a cabeça atingida por um bólido cor de rosa – era o nosso lugar predileto de estudos).
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Hoje são só lembranças. Nesses dias de verão, a mangueira, aquela mangueira única e inesquecível que se tornara quase um membro da família, já não vive, atingida que foi pelo cupim. Resta o sabor da memória. O sal da lágrima que embota o olho saudoso de quem viveu aqueles dias felizes e ingênuos. Esse mesmo sal que era melado e aplicado ao fruto sensual e colorido, que sorvíamos como o seio materno, lambuzando de paz e de conforto os nossos rostos e espíritos infantis.
Lívio Oliveira
O RICO E O POBRE
Rico recebe conselhos,
o pobre leva cacete.
O rico caga dejetos,
o pobre caga tolete.
Piroca de rico velho,
anda um pouco adormecida.
A do pobre, já se sabe,
chamam logo a falecida.
O rico espera o porvir,
porvir do pobre já foi.
A moça rica menstrua,
a moça pobre tem boi.
Lixo de rico é detrito,
lixo de pobre é munturo.
O rabo do rico é ânus,
o do pobre é cu, no duro.
Moça rica é muito linda,
a moça pobre é careta.
Xoxota de rica é vulva,
na pobre, o nome é buceta.
Sarro de rico é amor,
o do pobre é cachorrada.
Rico fudendo está amando,
foda de pobre é trepada.
Rico impotente é doente,
pobre impotente é capado.
Rico fresco é travesti,
pobre jeitoso é veado.
Rico correndo é atleta,
pobre correndo é ladrão.
Ovo de rico é testículo,
ovo de pobre é colhão.
Rico mora em palacete,
o pobre mora em maloca.
A rola do rico é pênis,
rola de pobre é piroca.
Rico tem indisposição,
pobre tem dor de barriga.
Rico amarelo é gremia,
pobre já sabe; é lombriga.
O rico não passa bem,
pobre está com caganeira.
Bosta de rico são fezes,
bosta de pobre é sujeira.
O rico limpa o furico,
com jato de água termal.
O pobre, se limpa o rabo,
é com sabugo ou jornal.
Rica que chifra o marido,
é avançada, é brincadeira.
O pobre quando é enganado,
é corno e a mulher chifreira.
Arlindo Castor de Lima
NATAL-RN, JUN 1966
ODOIÁ, MINHA MÃE,
SANTA DOS NAVEGANTES
Senhora dos Navegantes e de quem dela se acerque pedindo proteção, do topo da igreja de pedras escuras talvez trazidas dos arrecifes do outro lado do rio, da praia de Santa Rita ou Jenipabu, vizinhas, deita seus olhos sobre o mar: recomenda ao Senhor a dádiva dos peixes para os que se aventuraram na imensidão das águas, rogando retorno feliz.
Zelosa, também estende proteção aos que ficam, e todos, agradecidos diante de sua imensa bondade, fazem dengo, aprontando a Festa de Nossa Senhora dos Navegantes, no último domingo de janeiro, sobre águas corredouras do Potengi e solo da paciente Redinha, por assim se chamar pelas extensas redes-de-pesca dependuradas e a fazer voltas, labirintos, para a secagem, limpeza e reparos da malha, em varas bifurcadas fincadas em meio ao areal branquinho que recebe, não se recordam os anos, manso, o vento que renova o chão que é quase pó, da ponta de céu azul, claro, de poucas nuvens, onde se misturam águas doces, de pra lá dos igapós, aos sargaços desaguados do mar atlântico, imenso e verde, quase sereno.
O rio, Grande por nominação de conquistadores lusitanos, mercenários de El-Rey, tomado de barcos decorados em bandeirolas coloridas por todos os lados, comemora. O velho mercado, nativo da vila originária de antigos pescadores, também, no seu cheiro de dendê e cachaça, ginga tostando no óleo da caçarola, à frente dos fiéis, fogão já não mais à lenha, parece templo, quase silêncio.
Em derredor do Redinha Clube, herança de primitivos veranistas, armam-se barracas para a venda de comidas e bebidas - grude de Extremoz, tapioca, fuba embutida em barquinhos feitos artesanalmente em palitos de palha, linhas e papel-seda de cores vivas, vermelho, amarelo, azul; quentão na ordem do dia, quando a caipirinha, a de dois dedos (mindinho e indicador), a cerveja, falam mais alto e ajudam o canto e os acordes do violão. Em operação, carrossel, roda-gigante, balanços de barcos pesados, estandes de tiro, jogos-de-argola, e até alto-falante, a oferecer músicas às bem-amadas. Desejo.
No palanque montado de véspera, em frente à capelinha branca, oratório de pescadores, de poucos bancos, humilde como eles, será encenado o boi-de-reis, uma chegança, quiçá um fandango, participantes excitados, gajeiro encantado pela presença e beleza das pastorinhas - cordões azuis, encarnados, espíritos de velha etnia. Tradição.
O povo fará procissão. O padre, em paramentos cuidados, dirá missa e, feito batista, sacramentará os pagãos; moças casadouras ganharão aliança em vestes bem brancas; novenas anteciparão maior proteção.
- Viva Nossa Senhora dos Navegantes !
- Viva !
As Imagens são duas, que importa, se a festa é única como a crença do povo?
- Odoiá!
Apinhado de fervor à espera das bênçãos que vêm do rio, o trapiche que serve ao embarque e desembarque da Santa, o mesmo usado pelos que fazem a travessia fluvial, hoje no Albacora Azul - pintado de verde e branco - estará pleno, e os rojões espoucarão à passagem da boa mãe poderosa, tranqüila e terna, eterna na memória católica.
- Vai um alfinim, moço? Cuscuz ao leite-de-coco?
A praia, da ponta do cemitério dos ingleses - hoje ancoradouro da balsa do Pipes - ao quebra-mar do farol da barra, estará toda tomada por uma multidão de devotos. Bugres, a circular, trazendo gente bonita, bronzeada ao sol do passeio pelas dunas móveis, fazem a alegria dos turistas. Os donos de bar, os balaieiros de pitombas, serigoelas e cajás, os meninos do picolé, o sorveteiro Clóvis, festejarão lucros, e das ruas da vila, junto ao prefeito e indefectíveis pedintes de voto, sorridentes e prometedores, virá a procissão de terra trazendo a Santa dos mesmos milagres, mais humilde, não menos gentil, saída da capelinha branca e erguida, ninguém sabe quando, na mais elevada duna, acompanhada de cantorias e rezas entoadas ao ranger de terços de velhas senhoras, muitas, filhas de finados caçadores-de-caranguejo dos mangues seculares da lamacenta Camboa, para onde não se dirigirão Os Cão, aguardo de terça-gorda de carnaval.
Tudo será alegria, e o encontro das Imagens é a fé renovada a cada fim do mês do caju.
Alegria tanta que se desdobra em novidades, fazendo o insistente Baiacu na Vara antecipar a quarta-de-cinzas e de tristeza, lembrança de que o ano nosso começa na quinta, ainda devagar, para se firmar na segunda-feira de fim de folia.
Na margem oposta, da Pedra do Rosário, local onde a Padroeira Nossa Senhora da Apresentação foi deixada por colonizadores impositores de religiosidade, ao quebra-mar do Forte, protetor da Povoação dos Reis, depois cidade Natal, contra corsários do norte e indiada em revolta, sem querer entregar-se, virar escrava, ceder o chão, na boca da barra, a gente acotovela-se, aplaudindo a passagem da Santa da igreja de pedra, renovando súplicas por dias melhores.
No cais do porto, o navio apita e a tripulação acena, agitando lenços ou bandeirolas que enfeitarão de gestos multicores os nautas da procissão embarcada. Os ioles descerão as rampas dos clubes da rua Chile, outrora importante a ponto de abrigar sede de governo provincial, o ex-todo-poderoso Lloyde inglês, grandes frigoríficos da indústria da pesca, famílias de tradição e labuta, e singrarão o rio soberbos como em memoráveis regatas, ao lado de lanchas modernas e velozes, algum iate porventura ancorado no clube da Limpa, jet skis em manobras lépidas e mergulhos radicais, velas coloridas das pranchas do wind surf da paisagem mais jovem, uma ou outra quase extinta jangada de praia do litoral norte, mais distante do progresso, Maracajaú, Pitangui, Muriú, ou, quem sabe, um paquete como os que subiam a praia do Maruim sobre rolos de troncos de coqueiro, nos fins de tarde, entupidos de mistérios e de lulas, polvos, tartarugas, ciobas fresquinhas, cavalas, ariocós, galos-do-alto, xaréu, e até o pegajoso cangulo de apreciado e, dizem, milagroso caldo.
Os timoneiros estarão em festa. Os ultra-leves, como as gaivotas, pairando, seguindo a frota, também. Os pescadores contarão estórias, falarão das tormentas e cerrações, nortadas, e recordarão comemorações de outrora, ritual de anos sem conta, antecipando o 2 de fevereiro de Iemanjá, de Iara, rainhas das águas, quando teria festa no mar.
Uma imagem pelo rio, outra pelos becos e ruas da chamada e amada prainha, esquina à venda do cansado Deífilo, rua do Cruzeiro, cemitério às homenagens dos póstumos, Pé-do-Gavião, calçadas profanas do povo novo, de profissões hoje diversas. Todos confundem-se à passagem das Senhoras do navegante, são todos iguais nesse momento, na fé e na festa, no aplauso aos rogos atendidos, na crença na Santíssima Unidade, dogma de bem-querer.
Como começou essa festa, não se sabe. Vem de antes da virada do século, diziam os mais idosos repuxando memórias que vinham dos pais, referências de avós, de tios que enfrentaram os mares e os ventos de antigamente, embarcações diminutas contra o tenebroso oceano e que só retornavam se guardados pelas súplicas da Boa Senhora.
A procissão de duas imagens é recente, dos tempos da construção da igreja dos veranistas, época na qual os nativos insurgiram-se contra a posição da Imagem voltada para a vila, de costas para o mar, de onde vinham as orações mais recorrentes, salgadas de perigo e medo de morte medonha, incerta, muitas vezes sem choro de corpo presente.
Atendido o apelo, a paz voltou à vida da velha vila e estância gostosa e romântica de veraneio, cativante, acolhedora, balneário a amealhar boêmios e corações mais despojados, amantes de violões que cantavam praieiras de doces e revelados amores, e que falavam de ventos que assobiam em telhados, assanham cabelos da morena e encrespam ondas do mar... tempos que jamais voltarão, é verdade, mas que materializam-se em sonhos no dia da festa santa.
- Saravá !
Eduardo Alexandre