“A resolução do caos transformaria o Brasil num tedioso inferno de problemas resolvidos.”
Josias de Souza
GRAFITE
Imprimindo sua doce voz
Para suprimir minha confortante dor
Comprimindo seu prazeroso grito
Para restringir meu calado choro
Resistindo à sua explícita indiferença
Para afagar a minha estimada existência
Quase desistindo,
Declaro
Aqui e agora,
Gloriosa independência
Deborah Milgram
O caminho de comprar livros
Ainda lembro, no encantamento de minha juventude, de quando descia para a Ribeira em busca das novidades da Livraria Clima. Saía do colégio de bolsa nas costas e sol a pino. Descia a ladeira do Baldo embalado pelos gestos falsos da gravidade que mostrava a sua verdadeira intenção quando eu passava por baixo do viaduto e subia pela Rio Branco.
O cansaço esticava em légua e meia a ladeira ingrata. A calçada da esquerda era a que me proporcionava a melhor visão do majestoso e esquecido prédio da TVU. Dava uma paradinha no Cinema Nordeste para ver os cartazes das matinês e encontrava, vez por outra, alguma loira de olhar sedutor em uma posição meio desinibida que escondia seus fartos seios com as mãos, resguardando-se por trás do vidro da vitrina.
Voltava a Rio Branco e aproveitava para cortar caminho pelas ruas posteriores ao Churchill para ouvir a melancólica poesia que as pedras desalinhadas dos antigos calçamentos me segredavam. Atravessava correndo a Junqueira Aires até parar na calçada da Capitania. As brechas da velha fachada sem cor, juntamente com os restos das pequenas construções que se avizinhavam, deixavam-me encarar, do outro lado do nada, o rio Potengi.
Num pulo já estava no pátio da rodoviária. O ruge-ruge de pessoas e ônibus era o prenúncio do partir e do chegar. Velhos, crianças, feirantes, cestos de frutas, feijão, galinhas amarradas pelos pés, vendedores de amendoim, cobradores e seus trocados por entre os dedos, motoristas e seus cafés, apitos de fiscais. Era um sem-fim de imagens em breves segundos. Ônibus de porta de manivela esperavam malas, bagagens e bagulhos que se entocavam um a um em seu subsolo.
Meu passo sem medo cortava as plataformas dos intermunicipais e dos interurbanos. Alguns homens e mulheres sem-destino olhavam aquele reboliço em busca de alguns trocados ou, com um pouco de sorte, um trago a mais.
Entrava na Dr. Barata em busca da Livraria Clima. Ainda na porta procurava as estantes do lado esquerdo. Lá findavam as minhas buscas. Cheguei a passar horas folheando os livros e procurando aqueles que se encaixavam com a mesada semanal.
Esbaldava-me com tantos livros. Foi lá que conheci as letras de Alex Nascimento (Quarta-feira de um país de cinzas) , Celso da Silveira (50 glosas sacanas), Tarcisio Gurgel (Os de Macatuba), Deífilo Gurgel (Os dias e as noites), Waldir Reis (Nós sofre, mas nós glosa), José Alexandre Garcia (Acontecência e tipos da Confeitaria Delícia) e tantos outros escritores.
Amealhei alguns trocados economizando no lanche escolar, para conseguir comprar alguns livros. Hoje, quando passo em frente da antiga Clima, sinto a saudade do trajeto Alecrim-Ribeira. Sinto que minha disposição já não é a mesma e não consigo mais ver as estantes do lado esquerdo onde me encantavam o buscar e o revirar livros. A velha rodoviária ainda permanece com aquele cheiro de esquecimento. Nunca deixará de ser velha. Talvez por já ter nascido assim.
Enfileirados em minha estante descansam os antigos exemplares. Guardam o meu carinho e alguns segredos em suas letras. As folhas soltas, marcadas, relidas, fazem um trajeto que nunca sairá de minhas lembranças. Uma lembrança que nunca será substituída...
José Correia Torres Neto