Mainha (...) naquele momento tocava sentado na calçada da Casa Yemanjá e encantava o peito de concreto da Cidade Alta.
Cid Augusto
FOTOS DO CARNAVAL DO CENTRO HISTÓRICO NO
http://carnavaldocentrohistoriconatal.blogspot.com/
Hugo Macedo
De novo, eis-me aqui às sete e tanto
De novo, eis-me aqui às sete e tanto,
faltando muito pouco para as oito
(como se o tempo fosse um intervalo
entre as sete e as oito — ou ao contrário.
Não, não. Não é. O tempo é o que se pega.
Puntiforme. Sem tempo que o meça.
Diria um quase instante. Mas não é.
O instante sabe o pós. Falo de pré,
de coisa que se finda e não começa.
Que sabemos que há, mas que escorrega
dos dedos e das mãos, sem que o horário
— sete às oito — transcorra. Mais não falo).
E eu, que do finíssimo biscoito
nada sei, me atraso ou me adianto?
Antoniel Campos
COISAS DO BECO DA LAMA
Meu nome está registrado no "livro preto" desde sei lá quando. Creio que desde os primeiros instantes da Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências (Samba). Lembro-me apenas de havê-lo assinado numa tarde, talvez de sábado, enquanto bebia meladinha no Bar de Nasi, ao som do sax de Mainha, que naquele momento tocava sentado na calçada da Casa Yemanjá e encantava o peito de concreto da Cidade Alta.
Meladinha à tradição de Nasi é diferente da receita do dicionário. "Bebida feita de cachaça e mel", diz o Aurélio. Em Nasi, hoje Bar da Meladinha, acrescenta-se limão e mistura-se tudo no copo utilizando-se uma haste de madeira com pequenas saliências na ponta que é acionada pelas palmas das mãos, como quem acende fogueira friccionando gravetos. Dependendo da quantidade, pode crer, qualquer pinguço sai de fogo.
Tenho a satisfação de haver bebido meladinha batida pelo próprio Nasi, que morreu faz alguns anos. Não fomos amigos, nunca trocamos palavras além de simples cumprimentos e informações básicas de balcão de bar, "Bom-dia", "Boa-tarde", "Quanto devo?", "Custa tanto", essas coisas. Nasi nem sabia quem sou, pois não me apresentei, e talvez nem imaginasse a importância dele próprio para a História boêmia de Natal.
O velho Mainha sabia de mim porque nasci e me criei em Mossoró, onde ele residiu ao sair da terra natal. Tocou na banda de Arthur Paraguay, casou-se e teve filho na taba dos monxorós. Sentávamos nos bares e conversávamos nos intervalos das músicas. Pedia para morrer no Beco, conforme lembra o jornalista Paulo Augusto, em "Lombras de Natal". Atenderam-no: o coração dele ficou plantado na porta do Bar de Odete.
O "livro preto" que o jornalista, poeta e artista plástico Eduardo Alexandre, o Dunga, presidente da Samba, transporta consigo para o caso de uma filiação de emergência é meu título para as eleições que se avizinham. Sim, 2006 é ano de campanha também no Beco da Lama. Dunga deixará a presidência da Samba. O processo sucessório foi deflagrado há semanas. Existem duas chapas lançadas e a possibilidade de acordo.
Meu amigo Dunga é um presidente porreta e quem o suceder terá de suar a camisa para a peteca não cair. Havendo disputa, votarei em Alexandro Gurgel. Escolha afetiva, pois o outro concorrente, professor Bira, também merece o respeito e a confiança da galera. No caso de consenso, pelo que se fala, o poeta Antoniel Campos assumirá a dianteira da chapa, secundado por Alex e Bira, o que poderá ser bom para a Samba.
Muitos afirmam que as disputas fortalecem a democracia. O Beco, porém, é democrático pela natureza da arte e do espírito de seus freqüentadores que podem se dar ao luxo de tomar decisões consensuais. Não se chegando a isso, tudo bem, vai-se às urnas conferir o desejo da maioria, numa disputa pacífica, sem feridas, rancores e outros males que geralmente afetam quem se envolve em política, seja lá de que natureza for.
Cid Augusto
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Dália e Maurílio,
Saravá prá vocês dois!
Mílton Homem de Siqueira era de família importante, tradicional e fidalga (dizia-se então). Irmão de Esmeraldo e Oscar. O primeiro, professor, poeta, uma das maiores culturas do Estado, uma espécie, em termos literários e filosóficos, de irmão siamês de Papai, o velho Othoniel. Oscar Siqueira, homem seríssimo, desembargador, jurista de renome, grave, sisudo.
Mílton foi a ovelha negra da família, fiquem certos.
Menino - aos cinco, seis anos, por aí -, Papai, vez por outra, levava-me (era tempo, ainda, de Guerra Mundial), à base aérea de Parnamirim Field, onde trabalhava. Na "sopa" (leia-se ônibus), no caminho, apontou-me, certa feita, um homem com um enorme chapelão de palha na cabeça, detento no Esquadrão de Cavalaria - prédio que ficava onde hoje é a Escola Doméstica.
Era Mílton Siqueira. Assassinara, a facadas, barbaramente, uma infeliz prostituta no Areal, com requintes de selvageria. Arrumou-lhe o corpo ensaguentado, cobrindo-o com um lençol e saiu, como se nada tivesse acontecido, para beber cachaça nas Rocas, cinicamente. Antes disso, fizera uma palhaçada com Othoniel e com o próprio irmão, Esmeraldo. Ambos tinham um curso de francês para moças ricas e jovens estudantes do belo idioma de Hugo na Rua XV de Novembro (depois virou puteiro, a rua, ressalvo). Mílton, embriagado, na janela da sala de aula, na rua, passou a criticar e ofender aos dois mestres - que, segundo ele, exploravam a boa-fé dos pais dos alunos, não sabiam francês, etc., etc.
Não deu outra: Esmeraldo e Othoniel quebraram-lhe as ventas. Na maior cara-de-pau, saiu Mílton para a Tavares de Lyra e no famoso Bar "Cova da Onça", subindo num tamborete, fez inflamado discurso contra os "agressores". Na peroração exaltada, não deixou de pedir aos fregueses da casa um "auxílio financeiro para curar os ferimentos" - ou seja, para continuar a encher a cara nos botecos do Beco da Quarentena. O certo é que, enquanto durou o curso de francês dos dois poetas amigos, nunca mais apareceu, deu às caras, lá pela XV...
Por volta de 1948 - lembro mais vivamente -, saído recentemente da cadeia, meio desconfiado, cheio de vênias, apareceu lá por casa (morávamos na Rio Branco). Vinha com um livro de versos (era bom poeta) para Othoniel prefaciar. Foi bem recebido, conversou sobre literatura e pediu para voltar dentro de uns quinze dias, para receber a encomenda, o tal prefácio - coisa que Othoniel não gostava de fazer mas consentira, penalizado.
Não tinha mesmo jeito o homem. Dois ou três dias após, apareceu embriagado. Meu velho já fechou a cara, aborrecido. Mílton caiu na besteira de, na frente de mamãe, de mim e de um irmão mais velho do que eu um ano, no meio da conversa fiada, puxar da cintura e exibir, acintosamente, para se mostrar, por certo, uma pistola de fogo-central - aquela de dois tiros e uma carreira. Não deu outra: papai, de bengala em punho, botou o rebento dos Siqueira pra correr com pistola e pernas pra que te quero, ladeira abaixo.
O tempo passou e passei eu muitos e muitos anos fora de Natal. Quando vinha por cá, de férias, ouvia, no Grande Ponto, notícias - muitas delas jocosas - das presepadas de Mílton. Depois, de volta à taba, cheguei a comprar -lhe sonetos, ali, na calçada do Café São Luiz. Tinha a fama de pedófilo, de pederasta depois de velho.
Tenho cá a impressão que fazia isso para chocar à opinião pública e, principalmente, para ofender os parentes, os irmãos. Sei, também, por outro lado, que era ajudado - sem que o marido soubesse - pela esposa de Esmeraldo, Íris, uma santa criatura, vivinha-da-silva, irmã do meu amigo João Meira Lima (falecido), mãe de Juliano e Mano Siqueira. Peguei-os no colo, quando meninos, bebês, na Rua Felipe Camarão.
É verdade, dou fé.
Um abraço nos dois.
Laélio Ferreira
JERIMUNLÂNDIA
Jaeci
Termo lapidado por Othoniel Menezes, poeta nativista de “Sertão de Espinho e Flor", para designar a praieira dos nossos amores. Cidade erigida por decreto. Nunca foi vila ou freguesia. Recebeu os agnomes: Cidade dos Reis, Cidade de Santiago, Natalópolis, Nova Amsterdã, Jerimunlândia, Londres Nordestina, Natalvesmaia. Sua fundação é impregnada na nebulosa da polêmica. Quem seria seu signatário: Jerônimo de Albuquerque, João Rodrigues Colaço ou Mascarenhas Homem?
Impressões e controvérsias. Frei Luís Santa Tereza, “Da Cidade de Natal, não há tal” (1746). No quengo de Manuel Dantas, “Natal já é hoje antiga e será eterna como o mundo, porque nasceu envolta na lenda”. Cascudo revela: “A cidade do Natal, fundada no séc. XVI, nasceu no séc. XX. Os intermediários de história guerreira, política ou dorminhoca. Faz de conta que não existiram”.
Na Contemporaneidade, a cidade quanto mais imbuída na mundialidade, mais apartada da sua história. Pela mediação do cotidiano no lugar, somos levados dos fatos particulares à sociedade global.
O turismo é a parcela essencial do espaço que se transforma em mercadoria. A entrada da cidade no mercado das paisagens, acarreta transformações sócio-espaciais impulsionadas pelo desenvolvimento desse vetor econômico. A produção de lugares de consumo e o consumo dos lugares redesenham a urbe, impondo-lhe formas, funções e imagens completamente novas.
No contexto dos anos 90 temos imbricado: os resquícios da urbanização industrial periférica (abortada) e uma emergente forma de urbanização – a turística. Essa redefinição se expressa no novo imaginário da região, em que o Nordeste litorâneo subjuga o Nordeste do atraso profundo das secas.
A cidade coloca-se no mundo para ser o nosso lugar. Território encantado, repleto de significações. Cabe ao citadino ler o texto social impresso nas paisagens, decifrar suas aderências, seus entraves e (transpondo as aparências) suas alienações.
No livro “Massacre da Natureza” de Júlio Chiavenato (Moderna, 2005): “Grandes cidades, e até capitais, como Natal, no Rio Grande do Norte, não possui redes de esgoto: usam-se fossas”. Não sabe o autor que a totalidade do reduzido percentual de saneamento (em torno de 23%) é despejada ‘in natura’ no leito do rio arrimo. Na Paraíba, a simples execução do bolero de Ravel no ocaso ribeirinho demarcou um evento turístico. Nós demos as costas ao Rio Grande – “sem ter quem lhe conceda a extrema-unção de um beijo”. Oswaldo Lamartine segredou para Diógenes da Cunha: Natal não existe! O que chamamos de Natal é apenas o assoreamento da beleza do Potengi.
Os raros espaços de lazer são equivocados ou expropriados... A ciclovia da Via Costeira encontra-se em estado deplorável, os hotéis utilizam como canteiro de obra, os malfazejos buracos e cimentos petrificados tornam o passeio perigoso, impraticável. Nas reurbanizações praianas (Ponta Negra, Artistas/Forte, Avenida Roberto Freire) os calçadões foram construídos com pedras portuguesas, que por ser um piso irregular não favorece as atividades esportivas. Obra pensada esteticamente, sem considerar a real utilização do aparelho urbano pela população. Mentalidade barroca-tropical nas intervenções urbanísticas.
A pólis é arquitetada priorizando o tráfego automobilístico. Nos três viadutos construídos no governo passado a ausência de passarelas revela a insignificância dos pedestres. A cidadania é ratificada pela propriedade de um bólido, quem não possui um carro na pós-modernidade é um pária. Embaixo do viaduto do Baldo converge um frenético movimento de transeuntes, que arriscam a vida na travessia diariamente improvisada. Há décadas que a população clama (em vão) por uma simples e providencial passarela.
No Tirol tem uma lagoa escura, um recanto verde no meio da selva de prédios. Vizinha ao rio Tiuru (rio da água de beber), foi horto, aviário na segunda guerra, ponto chique nos anos 60 e oásis para travessuras adolescentes. Hoje, a Lagoa Manuel Felipe encontra-se poluída, escondida e acabrunhada. Premente resgatar a cavilosa Lagoa. Para mostrá-la, exibi-la, devolvê-la aos natalenses, basta derrubar o muro da Prudente de Morais. Urge inserir a Lagoa na paisagem da cidade!
A ponte forte-redinha é exemplo hilário, se não trágico, uma obra na hora certa, mas no lugar errado. A prioridade não foi resolver o constrangimento da população (“do outro lado do rio”, além da “ponte da exclusão”, discriminados pelo preconceito e segregados no imaginário generalizante da “Zona Norte”) dos humilhantes congestionamentos diários, mas uma obra para perpetuar no horizonte um ícone administrativo – nas entranhas salobras da boca da barra, corcova de concreto encravada. A organização do espaço urbano prepara a geografia da cidade de forma a viabilizar os interesses político/privado. Pragmatizando uma neo-euro-colonização, que retalha o litoral numa desenfreada especulação imobiliária, estigmatizando as populações locais.
Escabrosa é a pendenga da pretensa área de lazer de Mãe Luiza, os hoteleiros não querem permitir que a comunidade tenha usufruto e mesmo livre acesso à praia. Recentemente, almejaram até expropriar toda a área da Via Costeira, ou legalizar a privatização da praia – que na prática já existe. Típico apartrade turístico, perverso e alienante.
Na Natal balneária, somos vítimas da exacerbação do modelo de urbanização litorâneo brasileiro. A contradição entre o processo de produção social do espaço e sua apropriação privada, diferencia os modos de consumo do lugar. Os lugares da cidade se delimitam, se fecham e se tornam exclusivos. O lugar não existe plenamente para todos. Outrora, Othoniel vaticinou à “Jerimunlândia” o carma do “pecado original de haver nascido na Esquina”.
Plínio Sanderson