domingo, julho 30, 2006

20 ANOS SEM ELE

Marcus Ottoni


“Repórter eu já fui. Lembro-me que, quando íamos entrevistar, nossa liberdade era grande. Se o homem não dizia nada, a gente inventava.”
Luís da Câmara Cascudo (30 de dezembro de 1898 - 30 de julho de 1986)

Luís da Câmara Cascudo


"Nestes 20 anos de encantamento, sinto que sua ausência
é um engano... Ele continua andando por esta cidade,
que ele tanto amou, frequentando
o Beco da Lama, a Ribeira e a Cidade Alta."

Daliana Cascudo



No Cantão da Tatajubeira

No Cantão da Tatajubeira
Encontrei o meu amor
Era feia, desengonçada
Cheirava que nem fulô

Debaixo da gameleira
Na Praça da Alegria
Passava a vida inteira
Em profunda calmaria

No Cantão do Potiguarânia
Na velha Rua da Palha
Cantavam e encantava
Praieira dos meus amores


Dos fundos da Rua Nova
A lama sempre escorria
No beco da boemia
Você sempre sorria

O ponto, o Grande Ponto
Chegou muito depois
Foi ponto e contraponto
Do amor de nós dois

Eduardo Alexandre




Imagem de Cascudo


— Já consultou o Cascudo? O Cascudo é quem sabe. Me traga aqui o Cascudo.

O Cascudo aparece, e decide a parada. Todos o respeitam e vão por êle. Não é pròpriamente uma pessoa, ou antes, é uma pessoa em dois grossos volumes, em forma de dicionário que convém ter sempre à mão, para quando surgir uma dúvida sôbre costumes, festas, artes do nosso povo. Êle diz tintim-por-tintim a alma do Brasil em suas heranças mágicas, suas manisfestações rituais, seu comportamento em face do mistério e da realidade comezinha. Em vez de falar Dicionário Brasileiro poupa-se tempo falando “o Cascudo”, seu autor, mas o autor não é só dicionário, é muito mais, e sua bibliografia de estudos folclóricos e históricos marca uma bela vida de trabalho inserido na preocupação de “viver” o Brasil.

Agora, mandam dizer de Natal que vão comemorar os 50 anos de atividades culturais, os 70 anos de idade de Luís da Câmara Cascudo, o que é de inteira justiça. Bater palmas ficou muito sem sentido, depois que, na televisão, artistas se aplaudem a si mesmos, fingindo que aplaudem os acompanhantes ou o público, êste último convidado perenemente a aplaudir tudo e a todos. O govêrno auto-aplaude-se, imitando o nôvo costume, e o Brasil parece uma festa... encomendada. Vamos esquecer o convencionismo publicitário, diante das comemorações a Cascudo. Êste fêz coisas dignas de louvor, em sua contínua investigação de um sentido, uma expressão nacional que nos caracterize e nos fundamente na espécie humana.

Lendo agora o vasto documento de Joaquim Inojosa sôbre O Movimento Modernista em Pernambuco (também dois tomos em véspera de quatro), vou encontrar o jovem Luís da Câmara Cascudo, nos longes de 1925, tangendo a lira nova. Não é surpresa para mim, que o saiba poeta modernista, não arrolado por Bandeira em sua antologia de bissextos. Em carta que Inojosa reproduz (seu livro contém, muita coisa que vale a pena conhecer, como retrato intelectual dos anos 20), o futuro autor da Geografia dos mitos brasileiros manda-lhe dois poemas modernistas para serem publicados no Recife. Eram de um livro que em Agôsto se chamava Bruaá e em Novembro do mesmo ano passaria a intitular-se Caveira no campo de trigo. Nunca se editou êsse livro. O poeta Cascudo permaneceria inédito, sufocado pelo folclorista e historiador.

Êste cronista sabia da fase poética de LCC por haver recebido dêle, eram eras remotas, um Sentimental epigrama para Prajadipock, Rei do Sião, um reino “governado em francês”. Como também lhe conhecia êstes Lundu de Collen Moore, que marca suas preferências nativistas sôbre os mitos importados de Hollywood, é bem típico do nosso modo de dizer em 1929:

Os olhos de Collen Moore
olhos de jabuticaba
grandes, redondos, pretinhos...
mais porém
são olhos de americano,
meu-bem.
Eu sempre prefiro os seus,
meu bem!

Olhos de ver no cinema,
só lembra a gente espiando
e depois é se esquecendo,
meu-bem.
Eu sempre prefiro os seus,
meu-bem!

Ôlho de gente bem branca
que não mora no Brasil
fala fala atrapalhada,
meu-bem,
é ôlho de terra boa
mas porém
eu sempre prefiro os seus.
Meu-bem!...

Tocando o verso inicial pela prosa, Cascudo não abandonou “mais porém” a poesia. Em sua paixão de brasileirista, vista-a no lendário, nas tradições, na espiritualidade primitiva e lírica de nosso pessoal. E registra-a com êsse amor de tôda uma vida fiel à sua terra e sua gente.

Carlos Drummond de Andrade



Luís da Câmara Cascudo:
50 anos de vida intelectual - 1918/1968


Ao atingir os 50 anos de atividades intelectuais, Luís da Câmara Cascudo confessa não compreender que interesse possa ter uma confidência sua, como escritor "profissionalmente provinciano", sobre seus métodos de trabalho e os antecedentes de sua incurável enfermidade de amar os livros.

Mas nada pode recusar ele, autor, a quem tantos anos dedicou a expor sua bibliografia, revelando-a a ele mesmo; a quem se colocou a serviço de sua velha e teimosa obstinação livresca.

Volta-se para o passado e começa a incursão na infância. A difteria promoveu a anjos do céu seus três irmãos. Por isso e a partir de então, seus pais o cobriram de asfixiantes cuidados defensivos, tentando libertar da lei da morte o terceiro rebento, magro, triste, amarelo e distraído como certas consciências. Todas as coisas apetecíveis e sedutoras faziam-lhe mal. Evitar sol, sereno areia seca ou molhada, vento da tarde, cabeça descoberta, luz da lua, pé no chão, fruta quente, banho frio, pisar na grama; brincar de correr, de pular janela, cavalo de carrossel, comida de lata, brincar com menina, bolo de tabuleiro, água de maré, pingo de chuva; pegar em rabo de lagartixa, encangar grilo, catucar pinto, puxar rabo de gato e outras tentações - eis o código proibitivo de vida-menino que lhe era imposto.
Restou-lhe o direito de ver livro de figuras, colecionar estampas de santos e ouvir estórias de Trancoso, enquanto menino e rapaz, da ama Benvenuta de Araújo e, homem feito, da inimitável Luísa Freire, sua Sherazade analfabeta.

Aos seis anos sabia ler. Não sabia como aprendeu e nem para quê. Os livros enchiam-lhe a casa: presentes dos pais e dos amigos destes. Coleções, álbuns, revistas aos montões.

Esse ritmo, acelerou-se no tempo. "Annante cum fuoco". Foi o primeiro menino, em Natal, a possuir um quarto para a biblioteca que era visitada, gabada, aludida nos jornais por gente grande. Dispensável é, pois, salientar a gabolice infantil e a natural afetação do " leitor de calças curtas e gravata crisântemo".
O pai não o orientou, jamais, para tornar-se um homem prático, industrial, comerciante: uma dessas criaturas surpreendentes que sabem as quatro espécies de contas de alto manejo, para ele impossível.

Fê-lo, porém, estudar três anos de Latim com João Tibúrcio (1845-1927), mestre das gerações, lento, gordo, irônico, suficiente. Latinos e gregos compareceram nas velhas encadernações simpáticas. "Graecum est, non legitur". Aprendeu o alfabeto e a transpor para letra romana o correspondente grego. O Latim era disciplina dominical, porque o professor ia almoçar em sua velha, ampla, alpendrada e desaparecida chácara, na rua Jundiaí. As "sabatinas" tornavam-se risonhas, saboreadas das curiosidades lidas nos poetas e historiadores da Roma Republicana e Imperial. Empurrado para ler os gregos, deve a isso a sua predileção etnográfica, deparando no milênio a contemporaneidade local. Descobria que a farinha de peixe da Amazônia era conhecida dos babilônios; que o costume de estirar a língua já fora anotado em Tito Lívio. Superstições ouvidas na cozinha doméstica estavam em Horácio, Tácito e Suedônio, em Aristófanes e Xenofante.

Como 98% dos brasileiros, teve uma formação desordenada, confusa, alagante. Lia tudo, alternadamente, com a facilidade que possuía o seu pai de mandar buscar livros na Europa. Eram obras indicadas pelos amigos letrados, livros lidos sem muita percepção.

A História foi a sedutora inicial e o amor fiel inarredável, ensinando-lhe a velhice das novidades e a universalidade do regional.

Em 1922, aprendeu a ler o Inglês para acompanhar os viajantes pela África e Ásia. A informação ampliou-se pelo conhecimento dos grandes continentes misteriosos.
O primeiro artigo veio em 18 de outubro de 1918, publicado em A Imprensa, jornal de propriedade e direção do seu pai, o Coronel Francisco Cascudo (1863/1935). O jornal durou de 1914 a 1927. Nele, a geração de Luís da Câmara Cascudo espelhou vozes, "limando na pedra o bico da pena potiguar, riscando todos os assuntos sabidos ou deduzíveis".

Em 1921, surgiu o primeiro livro: Alma patrícia, "estudinhos de críticas sem examinar a gramática dos poetas". No livro, havia uma curiosidade: o final do volume inclui uma notícia bibliográfica. Era a primeira. João Ribeiro, Afonso Celso, Alberto de Oliveira e Monteiro elogiaram-no.

Pedro Alexandrino dos Anjos (1872/1917), seu antigo professor de literatura, tinha profunda desconfiança das citações. Habituou Cascudo a ir verificar nas possíveis fontes. Esse hábito tornou-se mania. Cascudo deixa de citar se não pode consultar a fonte original. Despreza citações em Segunda ou terceira mão. A experiência que adquiriu em 50 anos de pesquisa contínua provou "que a frase lida no original do texto tem, às vezes, significação bem diversa. E as em idiomas estrangeiro, sofrem identificação fatal".

Para Cascudo, a leitura diária, normal, inevitável, posta no rumo utilitário do conhecimento é uma capitalização insensível e normal. Enriquece o leitor sem que a memória perceba o lento acúmulo da riqueza disponível. Naturalmente, afirma ele, o dilúvio determina a escolha limitadora das águas para a navegação. E assegura que não se deve abandonar a visita amorosa aos velhos, às vezes esquecidos autores que guardam fundamentos indispensáveis à orientação ou aferição das derivas.


Zila Mamede

In Luís da Câmara Cascudo: 50 anos de vida intelectual - 1918/1968
Fundação José Augusto, 1970.

por Alma do Beco | 7:54 AM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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