“Recado
Álvaro Moreyra, segui o seu conselho: As amargas, não.”
José Alexandre Garcia, abrindo o Acontecências e Tipos da Confeitaria Delícia
Zé Alexandre, o memorialista da boemia, completaria hoje 81 anos de idade.
Acontecências e Tipos da Confeitaria Delícia
José Alexandre Garcia
A Lata
Nos primeiros tempos, não havia W.C. ou simples mictório na Confeitaria.
Mijava-se numa desocupada lata de 5 quilos de ameixa, colocada num canto estratégico, não tão à vista da freguesia, mas também não tão oculta que dela não se apercebessem os necessitados.
Quando o conteúdo atingia os perigosos limites da borda, alguém dava o grito de alerta:
- Chega, Olívio, a bicha está cheia!
Aí, um garachué ou o próprio Portuga em pessoa, com infinitos cuidados para não respingar pelo chão ou sobre as próprias vestes, despejava-a em frente da Confeitaria, mas, de preferência, no meio-fio dos estabelecimentos vizinhos (se ninguém estava percebendo).
Quando era noite, assumia um olhar cúmplice e apontava a rua:
- Vire-se por aqui, mas cautela, meu rapaz, não me mije na porta da Confeitaria.
Aliás, dois vizinhos queixavam-se do intenso odor amoniacal, quando, de manhã levantavam as respectivas portas de ferro.
Eram Newton Rocha, o mais sociável dos sócios de Rocha & Irmão, e Aprígio Teixeira, vulgo Pipiu, que, de rústico homem de campo, tornara-se dono de farmácia, quando o velho e bonachão Dr. Guilherme resolveu aposentar-se.
Olívio fazia cara de inocente.
- Interessante, a porta do meu estabelecimento está sempre limpa.
Neste ponto, não resisto à tentação de contar uma história de Pipiu, que entendia de criação e plantação, boi, vaca, feijão macassar, casa de farinha e feitura de rapadura e jamais de artigos farmacêuticos.
Um empregado novato na casa equivocara-se com um pedido e, quando o freguês mui justamente reclamou, Pipiu sentiu-se no dever de passar uma reprimenda no funcionário, à guisa de satisfação ao freguês.
- Cuidado, menino! Numa troca de remédio, você mata um desgraçado deste e onde vamos parar? Ele no cemitério, você no olho da rua e eu na cadeia!
Escusado dizer que, assombrado com a perspectiva, o comprador nunca mais botou os pés nem na calçada da farmácia.
Mas, voltando à lata de Olívio, uma vez desenrolou-se uma quase tragicomédia entre o proprietário e José de Brito, irmão do despachante João de Brito, uma espécie de capataz dos ingleses em São Miguel e que, de raro em raro, vinha à capital.
Mas, quando vinha, tirava o atraso. Tomando uma Brahma braba, vingando-se das semanas e semanas de monotonia nos Cafundós de Judas, como justificava-se.
Naquela vez, acompanhou o irmão, assíduo do Português. Não sabia nada sobre mictórios, W.Cs. ou latas.
Depois de bem uma dúzia de cervejas, sentido a bexiga cheia, olhou dum lado e outro e, como não encontrou indícios do procurado, perguntou a João de Brito:
- Onde é que se verte água aqui?
- Ali, naquela lata – apontou displicente, o perguntado.
Zé de Brito levantou a dita cuja a jeito e chô, chô, chô.
Quando Olívio tomou ciência, a lata ameaçava transbordar.
- Cuidado para não me molhar o chão! – gritou.
E, de longe, com as precauções devidas, procurou entregar-lhe a lata sobressalente.
Zé de Brito, quando se aliviava, desligava-se do mundo. Parecia uma cachoeira caudalosa e interminável e não atinava como proceder à operação triangular de soltar a ferramenta, como chamava Gastãozinho, idem a lata cheia e apossar-se da substituta.
Olívio alarmava-se.
- Atenção! Atenção para não molhar as caixas de biscoitos!
Não houve jeito. Quando Zé de Brito abotoou a braguilha, a Confeitaria parecia ter sido lavada à mangueira, todo mundo com os pés levantados, em cima doutra cadeira, e Olívio e os garachués empenhados em sacudir água, passar creolina e enxugar o chão.