quinta-feira, março 30, 2006

CRIADOR E CRIATURA

Marcus Ottoni


“É reduzir-se em demasia a inteligência dos brasileiros imaginar que será bastante dizer que os milhões não foram distribuídos a parlamentares, mas sim corresponderiam a caixa dois de campanhas.”
Do relatório da CPI dos Correios

"A continuar como estamos, corremos o risco de estabelecer uma cultura da corrupção. Enquanto a impunidade reinar, a corrupção crescerá."
Do relatório da CPI dos Correios

Orf



Esse Deus
Essa grande invenção
Tão confortante
De ancestrais
Leva além
Traz aquém
De todo limite!
É implosão
Explosão
Buraco negro
Pulsar...

Eduardo Alexandre




O livro perdido de Silva Mello

Em fevereiro de 1972, no auge da ditadura militar brasileira, o médico e escritor mineiro Antonio da Silva Mello era o membro mais velho da Academia Brasileira de Letras, quarto ocupante da cadeira 19 fundada por Alcindo Guanabara, tendo como patrono Joaquim Caetano e hoje ocupada pelo carioca, outro Antonio, Carlos Secchin.

Sem medo da censura ou de pressões eclesiásticas, Silva Mello cavou naquele tempo alguns poucos espaços na mídia para reivindicar o direito de publicar um livro, na verdade um estudo, sobre a mania da raça humana em inventar deuses e religiões como ilusória proteção à sua própria insignificância e solidão no contexto do Universo.

Autor de grandes obras científicas, referência mundial nos seus estudos sobre a medicina, o filho de Juiz de Fora foi boicotado naquele ano por editoras como a José Olympio, que não queria entrar numa enrascada de negar a existência do deus cristão, da Civilização Brasileira, que diante da conjuntura negativa argumentou não estar editando muita coisa mesmo.

O autor procurou também a Melhoramentos, que achou o subterfúgio de só viabilizar a publicação com a ajuda do Instituto Nacional do Livro, àquela altura dominado pela vigilância militar. Amigo da diretora, Silva Mello preferiu não constrange-la numa possível situação de protesto dos agentes da repressão.

O escritor morreria no ano seguinte, 1973, aos 87 anos, sem conseguir oferecer ao País sua tese oriunda de reflexões filosóficas, físicas e biológicas. Se chamaria "Eu no Universo", um título aparentemente pretensioso mas que o mineiro explicava ser de "uma humildade sem nome", afinal o eu em questão era o homem, a raça terrena.

Soprando poeira durante o final de semana nas estantes da minha coleção de quadrinhos, dei de cara com uma página de jornal, sem identificação, dobrada no interior de um "Almanaque 1972 do Batman". Como naquele ano minhas atenções só estavam voltadas para a "Mini Copa" da ditadura em homenagem ao sesquicentenário da independência, suponho ter sido meu pai ou meu irmão que arquivou o material.

Um dos pouquíssimos brasileiros que gozou da amizade com Albert Einstein, Antonio da Silva Mello foi um dos maiores médicos do País e destacado professor, ensaísta, gastrônomo e filósofo. Guardo dele uma obra de 1953, comprada em 1985 no Sebo de Elite, de São Paulo, chamada "Nordeste brasileiro - estudos e impressões". Quem leu identifica que ele bebeu nas fontes de Câmara Cascudo e Gilberto Freire.

No livro perdido citado naquela quase perdida entrevista de 1972, ele comenta sobre a obra: "nós estamos completamente perdidos dentro do mundo. Não entendemos nada de nada". E fazia uma analogia entre o homem no Universo e um gato numa biblioteca: "o gato conhece a biblioteca a fundo, todos os seus recantos, mas não tem a menor idéia do que seja uma biblioteca, nem para que ela serve".

Sempre comunguei com a tese de que há uma cultura enviesada quanto ao sentido da criação em se falando de filosofia e religião. O homem não foi criado por deus, mas sim criou deus como um salvo-conduto prévio e ao mesmo tempo uma carta de seguro ao incerto futuro. Silva Mello diz "para nos sentirmos importantes, acabamos criando deus e as religiões", e acrescenta "a religião tem causado prejuízos horrorosos, veja aí a Bíblia, um livro escrito por homens mas adotado como modelo divino".

Quando assumiu a Academia Brasileira de Letras em 12 de abril de 1960, sucedendo Gustavo Barroso, Silva Mello galgava o olimpo dos imortais respaldado por uma vasta obra de grande referência nacional e internacional. Pesquisou e escreveu sobre nutrição, metabolismo, epidemiologia, nefrologia, gastroenterologia, psicologia e psicanálise. Um livro sobre efeitos biológicos da radioatividade teve repercussão em todo o mundo científico.

Foi o fundador da Revista Brasileira de Medicina em 1944, durante a Segunda Guerra, e permaneceu seu diretor científico até o dia da sua morte, em 19 de setembro de 1973. Ainda sobre aquele livro que parece nunca ter sido editado, o escritor dizia na entrevista que "o homem é um animal com todos os instintos animais: o de conservação e o de procriação, mas tem complexo de superioridade, quer ser importante no contexto universal, e isso já é o trabalho da razão, a razão que está nos arrasando".

Se alguém por acaso tiver notícias que o livro "Eu no Universo" chegou a ser resgatado após a morte de Antonio da Silva Mello, por favor avise. Mas antes faça a leitura do mesmo, antes que ditadores e pastores modernos lancem mão dos novos métodos de censura e evitem mais uma vez que um pensador filosofe a respeito da inexistência de deus e da pequenez do homem, seu criador.

Alex Medeiros

por Alma do Beco | 11:15 AM


Hugo Macedo©

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