"Eu não prometo, eu garanto."
Luiz Inácio Lula da Silva
Na antiga Rua da Palha e adjacências,
o I Réveillon do Centro Histórico
Era na Praça da Alegria e na Rua da Palha que aconteciam os ajuntamentos sociais da cidade. Para ali, convergia a sociedade natalense em suas festas: o São João; o dia da padroeira, Nossa Senhora da Apresentação; Natal e; Ano Novo. Hoje, a Praça da Alegria chama-se Praça Padre João Maria. A Rua da Palha, Vigário Bartolomeu.
Na Rua Grande, nossa primeira artéria, hoje Praça André de Albuquerque, ficava a catedral de Nossa Senhora da Apresentação, capelinha que deu origem ao arruado que viria a ter sua primeira Rua Direita, planejada, na Rua do Caminho de Beber Água, depois chamada Rua da Conceição, a segunda da cidade. A Travessa do Tesouro (Rua Cel. Cascudo) levava os afoitos à “Vai quem quer”, que abrigava prostíbulos de poucos amores e muita confusão, a hoje Rua Mossoró.
Para ir à Ribeira, o natalense descia a rua 25 de Dezembro, hoje chamada Avenida Câmara Cascudo.
É nesse local, hoje ameaçado de esquecimento em decorrência da expansão da cidade, onde será realizado, por uma iniciativa da Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências – SAMBA e apoio da Capitania das Artes, Sectur e Prefeitura Municipal do Natal, que patrocina o evento, o I Réveillon do Centro Histórico.
Para uma festa de resgate histórico/cultural como esta, não podia faltar aquele que levava a gente natalense, no começo do ano, para as Rocas, num festejo de devoção aos Reis Magos em sua capelinha: o boi-de-reis. O auto folclórico mais característico da cidade será encenado e dançado pelos deixados por Manoel Marinheiro, nosso maior mestre na atividade. Será às 22:00 horas do dia 31 de dezembro, em plena Rua da Palha, que depois, às 23:00 horas, assistirá ao rock regado a Beatles d’Os Grogs.
Meia-noite no Centro Histórico tem queima de fogos. Quebrando o silêncio dos rojões, os clarins ganharão a noite ao som do Zé Pereira e de marchinhas e frevos que nos chegavam dos carnavais pernambucanos de Olinda e Recife, evocação.
Enquanto a bandinha pega o Beco da Lama levando foliões pelos pontos históricos do velho centro, os que preferirem ficar vão assistir à apresentação da cantora revelação da cidade, Khrystal, num show que decerto ficará na memória de quantos o virem.
03:00 horas da manhã, bandinha chegando de volta ao palco da Rua da Palha, o mais esperado momento: o show de Elino Julião, esse norte-riograndense que durante anos acompanhou gente como Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, maiorais da autêntica música nordestina. Elino promete um show especial. Uma apresentação para calar todas as bocas que acham que sua música não combina com festa de passagem de ano.
Para encerrar a festa, às 05:00h da madrugada, esse que foi revelado pelo próprio Beco da Lama em festa da SAMBA e que hoje tem até fã-clube de Orkut e leva centenas de pessoas para os seus shows: Cabrito e Balalaika Brega Band, cantando as mais românticas canções.
Melhor, em outro ponto da cidade, não vai ter.
Quem for, vai ver.
(Eduardo Alexandre)
I RÉVEILLON DO CENTRO HISTÓRICO
DAS 22:00h DO DIA 31 DE DEZEMBRO DE 2005 ATÉ ÀS 06:00h DE 1º DE JANEIRO DE 2006
CONCENTRAÇÃO: RUA VIGÁRIO BARTOLOMEU COM CORONEL CASCUDO
Programação:
Dia 31 de dezembro
22:00h – Boi de Manoel Marinheiro
23:00h – Os Grogs
Dia 1º de Janeiro
00:00h – Queima de fogos
00:10h – Banda de Frevos Demalaecuia
01:00h – Khrystal e Banda
03:00h – Elino Julião
05:00h - Cabrito e Balalaika Brega Band
Contato:
Eduardo Alexandre: 9414-9394 3222-0821
Cidade do Natal
Luís da Câmara Cascudo
Durante cinqüenta anos, Natal progrediu tão pouco que melhor seria dizer que não progrediu. De 1810 a 1860, raros melhoramentos. Em 1810, Koster descreve-a com 700 habitantes; a rua Grande, larga praça vestida de camapu e mata-pasto, com orgulho administrativo da Câmara e cadeia acaçapada, o palácio rococó dos capitães-mores e as três igrejas: Matriz, Santo Antônio e Rosário.
Quatro ruas de poucas casas desembocavam na rua Grande. Anos depois é que se fechou o lado leste e a rua da Conceição abrigou o Governo e outros centros de poderio e papelório. Da Rosário, ao que depois de 1850 começou a ser rua do Comércio, se estendia o denso dos oitizeiros, sapotis e pitombas, o verde-claro imóvel das carrapateiras ramalhudas e das mangiriobas franzinas. Ao sul, margeando risco do “caminho de beber”, embastia-se a mataria de gameleiras, paus-d`arcos, aroeiras e pau-ferro.
Do Bardo ou Baldo ao monte, toda a elipsóide sul a leste, a vegetação irrompia vigorosa e alta, farfalhante e ampla. Casinhas rompiam a rua Nova (atual Av. Rio Branco), em largos espaços de faxinas, onde surgia, medroso, o ensaio das flores de casa, cravos brancos em panelas trepadas, maravilhas rasteiras, o rubro veludo dos amarantos, jasmins de cheiro suave, as perpétuas brancas, as saudades delicadas, os primeiros estefanotes, as bocas-de-leão, as cravinas simples, os rosedás insolentes de perfume. Perto dos galinheiros de reserva, as altas espirradeiras, as palmas dos tinhorões, sombreando as pequenas touceiras de nuvens do céu. Nas praçuelas, gameleiras, oitis, castanholas e mungubeiras estendiam sombras... No Bardo, lagadiço cercado de barro batido, fazia-se ponto de banho festivo e de peraltice ingênua. Depois de 1859 ou 60, a praça das laranjeiras reunia os pisa-flores chilreantes, de casacão de belbutina, colete rombudo, calças justinhas com fileiras de botões e o pescoço enrolado na gravata manta, com três voltas à Feijó, comendo o queixo e escondendo a testa nas abas do chapéu revirado, chititi como se dizia naquele tempo.
Depois da “ladeira” (muito tempo após, rua da Cruz) a Campina guardada, perene e seguro o grande pântano alimentado pelas marés. Havia uma pontezinha. Era um quadrado imenso, desolado, silencioso.
Corria, de sul a leste, o canavial cerrado; após, com bruscos trechos de areia lodosa, o coqueiral, espanando palmas até as encostas de Areal e Rocas. Cercadas, pelas dunas e pelos coqueiros, cinqüenta ou cem casas tímidas e espaçadas anunciavam a cidade. Gameleiras, tatajubeiras, mungubeiras davam o lugar das prosas. Era a Ribeira, pequena, triste, atufada em brejos, circundada de lagoas, de atoleiros, de pântanos. Era o alvo das rajadas do cholera e de bexigas. Lugar enfim onde moravam a pobreza, a indigência e a miséria – gritava, em 1850, Carlos Wanderley, no relatório da Assembléia.
O Potengi invadia, lambendo as pedras das calçadas, as rua enfileiradas. Vez por outra, terrenos alagados cediam e as construções vinham abaixo. Em 1869, é que o Dr. Pedro de Barros Cavalcanti de Albuquerque mandou fazer um anteparo. Dez anos depois, o Dr. Rodrigo Lobato Marcondes Machado informava sobre o serviço do cais – importante melhoramento empreendido no intuito de repelir as marés que ameaçam avassalar os terrenos e as casas...
Com Manuel Ribeiro da Silva Lisboa a cidade do Natal não tinha aspecto pomposo. As ruas em miserável estado, sem calçamento e entulhadas de areia; sem água, sem iluminação, sem cadeia e sem nada, declarava Parrudo. Novas ruas iam aparecendo no Bairro Alto – Cidade – como era chamado. O primeiro médico, Dr. José Bento Pereira da Costa, é de 1842.
Em 1859, o presidente João José de Oliveira Junqueira inaugura a iluminação a querosene, alguns lampiões, sugeridos, nove anos antes, por João Carlos Wanderley. Luz a gás tivemos com o presidente Antônio dos Passos Miranda, em 1870. Pouco tempo antes, 1870, Natal possuía ruas calçadas, alguns chafarizes e o velho desejo – o piso de pedras na ladeira. A Ribeira estava sendo o bairro comercial, dinheiroso, materializado. A rua do Comércio³ já estadeava prédios e armazéns repletos de açúcar, algodão, sal, peles, embarcados pelas sumacas e barcaças bojudas para Pernambuco, o grande comprador.
A cidade se alastrava, lenta, dos dois núcleos. De um lado, paralelo ao rio, corriam as casinha e cochicholos de palha. Da rua Grande, destronada pela rua da Conceição, partiam lances de moradas vaidosas em sua brancura e no chiste das janelarias altas e telhados em cauda de andorinha. São ponto de gente graúda: rua Grande, rua da Conceição, rua da Cruz, rua do Fogo, rua das Laranjeiras, Rua Nova... Nos domingos existem os lugares de passeios e de caça. Caminho Novo, Barro Vermelho, Passagem, Quintas, Refoles. E, desde 1850, a praia da Redinha, pouso dos presidentes, local das peixadas e serenatas dominicais. Apesar disto, J.C. Fernandes Pinheiro escreve em dezembro de 1871 – Em verdade a cidade do Natal, mesmo vista de fora, parece justificar o trocadilho que lhe ouvi aplicar – cidade-não-há-tal. Para o Dr. Henrique Pereira de Lucena, Natal era uma vila insignificante e atrasadíssima do interior (1872). Com as eras de oitenta, a política subjuga a Província. Os presidentes tratam de eleições, intrigalhas, discurseiras.
Os partidos tomam a sério os programas e os lugar-tenentes se digladiam em artigalhões e passeatas. Assim, até a proclamação sonolenta da República. O fato interessante de 1889 é ter o Conde D´Eu mandado o navio esperar por Silva Jardim, galo de campina da propaganda, que tinha ido arengar em São José de Mipibu.
A cidade do Natal, fundada no século XVI, nasceu no século XX. Os intermediários são períodos de história guerreira, política ou dorminhoca. Faz de conta que não existiu.
A sociedade
A sociedade era patriarcal. O elemento estrangeiro era nulo ou nenhum. No interior das moradas, a sala de visitas era lugar de uso raro. Pouca mobília. Jacarandá para os ricos. Pau preto, amarelo, madeira nova para os medianos. Tosco e louvado engenho dos artesãos primitivos servia de aparelhador incipiente. A sala de jantar é que era o domínio da dona de casa. Aí reinava a palavra, provando o ponto nos doces, trocando bilros e espiando a tarefa das mucamas favoritas. Pouca convivência social. Amizade de vizinhos faziam-se as palestrinhas corridas através das varas de cerca divisória. Limitava-se à cambiagem de receitas e de meizinhas caseiras. Acocorada nas esteiras amarelas sobre o tijolo vermelho, a dona nucleava a vida íntima, recatada e simples dos antigos. De muito em muito é que ousava espreitar pelo rotulado um vulto estranho à terra. Lugar de reunião era a Igreja. A semana santa era tempo de festa de olhos. Aí se espanejava a casaca de baetão, as calças de duraque, o chapelão alto.
A senhora se orgulhava do roçante, vestido de seda, a mantilha negra ocultando o duplo bandó, ou o cocó, onde o trepa-moleque se fincava, o pescoço rodeado de colares e fios de luxo, santinhos, espíritos-santos, figas de guiné e medalhinhas e, nos dedos, grossas memórias de ouro de moeda do Reino. O ciúme à portuguesa circundava-a de pavor. O marido fechava-a, murava-a, distanciando-lhe a existência livre e respirável. E de sua parte vivia na rua, palrador, discurseiro, politicóide, discutindo nomes sob as gameleiras, incorporando aos séquitos oficiais, grudados aos salões do ser. Presidente, longe de casa sem noção de vida, de lar e de carinho continuado.
As distrações eram de fundo religioso. Os Santos Reis, antefestejados com serenatas e cantigas típicas à porta dos amigos – tirando os Reis. Carnaval de entrudo com empapanguzados gritadores e encamisados sensaborões. Santo Antônio, São João, São Pedro com fogueiras, comidas de milho, fogos do ar, bailarico e banho de madrugada, sob os dendezeiros e ingazeiros do Baldo. Chegada de presidente anunciada pelos canhões da fortaleza, procissão de penitência, assombradora e tétrica e, em novembro, festa da padroeira, com as novenas, fogos de vista, bailes do noiteiro na entrega do ramo e jogos florais, duelo lírico e satírico, na alegria dos palanques erguidos em outeiros – eis o ciclo das diversões sociais. Os presidentes, exilados por dois ou três anos em Natal, procuravam as praias, os sítios com água corrente, faziam calçadas, teciam pilhérias, enchendo o tempo de espera para melhor província ou deputado geral.
A cidade sem iluminação, sem calçamento, sem segurança afastava a vida noturna.
Quem saía em visita, previamente anunciada, fazia-se preceder de escravos com tochas resinosas ou lampiões. Toda gente andava armada. Pela noite velha, os ladrões eram caçados a tiros afugentadores. Da Cidade à Ribeira, o silêncio apavorante criou lendas, assombrações e malefícios na Ladeira. Os paredões de barro vermelho, escondidos sob as celsas, salsas bravas, ortigas e mata-pasto, intimidavam. E à distância, o viver próprio dos dois bairros, a nenhuma convivência entre famílias, criou inimizades e apelidos: xarias e canguleiros.
Ao ruflo da caixa das nove horas, o silêncio caía, tangível, sobre a cidade quieta. O casario fechado e mudo não escoava réstia de luz. Ao longe, o clarão oscilante e rubro da candeeiro público. Vagos rumores de passos. E, ao estribilho das corujas, noitibós e caborés respondia o canto coral da saparia boiando n`água negra das poças. Compreende-se o prestígio dos alegres, dos vivos porta-vozes da risada, da gargalhada lusitana, da gaitada brasileira, o riso largo, sacudido, dobrado, interminável. A estes uniam-se as tradições de valentões, porque andavam à noite, de inteligência pelos versos rabiscados e de insubstituíveis, se tocavam um instrumento musical.
Alexandro Gurgel
Isaque Galvão com o Esquina 16, dia 23 último, no Bar de Nasi: Festa de Confraternização dos Amigos do Beco da Lama. Nossos agradecimentos a todos.
SENHORA MINHA
dizer-te para sempre ao verso primo,
assim, logo de cume,
sem ver se o verso meço, pauso e rimo
como de costume.
dizer que para sempre é quase nada
— além também seria —,
e nada é toda hora já esperada
— mais esperaria —.
dizer-te, a princípio, que só vivo
porque te fazes perto.
e mesmo se distante, mais cativo
sou do que liberto.
dizer, senhora minha, em teu ouvido
que tu me tens inteiro.
e ouvir o teu dizer mais atrevido:
tu me tens primeiro.
dizer-te que me apraz os teus impulsos,
caprichos, dengos, mimos.
bem quando entrecortando teus soluços,
sem motivo rimos.
dizer tantos dizeres já não ditos,
um gesto, uma coisa amena.
aos poucos eu despi-la aos olhos fitos.
tu, mais obscena.
calar, por um momento, meus dizeres.
deixar que te reveles.
e ouvir a voz dizer nossos quereres
pelas nossas peles.
tomar, na mesma boca, bem gelado,
um seco ou um campari.
o som pouco importando: blues ou fado,
desde que não pare.
e o beijo finalmente beijo seja
— nem dado, já o era —,
num tanto que nem falta e nem sobeja,
nem se faz espera.
(...)
manhã, inda teu corpo ao meu imisso,
e tu ias e eu vinha,
a ti completamente submisso,
tu: senhora minha.
Antoniel Campos
Carlos Humberto Dantas
Woden Madruga
A fila da noite de autógrafos do livro de Alex Nascimento (Amor e Outras Mentiras) se arrastava pelo enorme salão de festas do América, ao fundo o belo mural de Newton Navarro (que os homens o conservem como está), quando o poeta Carlos Gurgel se aproxima e me dá a notícia: morreu Carlos Humberto Dantas. Tinha sido no dia anterior, 20, uma terça-feira. Os cadernos culturais da semana silenciaram: sequer uma simples nota de três linhas. Do lado de lá da cultural oficial, nenhuma vírgula. Na mesma noite do livro de Alex, pedi a Carlos Gurgel que escrevesse sobre Carlos Humberto, o artista plástico, o poeta, o agitador cultural. Dos melhores artistas de sua geração, uma geração que vem do final dos anos sessenta e que se afirmava na década seguinte com J. Medeiros, Falves Silva, Avelino de Araújo, Venâncio Pinheiro, o pessoal da Arte-Correio, por aí. Pintor e poeta. Poeta premiado, ganhador dos prêmios mais importantes da província: o Auta de Souza, o Otoniel Menezes. Agitador cultural e editor do “Jornal do Livro” , que saía com o selo da editora “Natal dos Argumentos”, também sua criação. Estive na missa do 7º dia, celebrada na igreja de Santa Terezinha. Tirando a família, meia dúzia de amigos. Nenhum artista plástico, nenhum poeta desta terra que tem mais poeta do que gente, terra de artistas... Minto, estava presente Carlos Gurgel. É dele o belo artigo que transcrevo agora:
Fértil e Frágil
Carlos Humberto era um gentleman. Um gentleman da miséria humana. Refinado e atencioso. Silencioso e educado. Ele se lambuzava com a miséria e era um intelectual. Tinha extrema dificuldade de organizar a vida prática. Não socializava. Era solitário. Via tudo e anotava as cores e as dores do mundo.
Fictício e real, anacrônico e imaginário. Desembocava com seus olhos de lince, vários lances que admirava. Mexer com códigos verbais, escondendo neles a sua revolta, rebeldia e inconformismo. Via a vida como um eterno passageiro que agonizava. Que agüentava impropérios de quem dele e dela nada sabia. E ele não revidava. Ele escolhia as cores e as palavras para destilar todo o seu inconformismo da complexidade do que é viver. Do que é sobreviver. Do que é sofrer.
Essa mania de ser artista custa caro. Principalmente estando de bolsos vazios. Este estigma de ser visto como desordenado. Um fora de ordem. Ele (Humberto) não ligava, não tava nem aí para a decifração do que era sistemático e cientificamente dentro dos padrões. O que agoniava ele, era ele perceber que o mundo é hipócrita. E ele sendo proscrito, não conseguia dialogar com a terra.
Por isso (e por outras) ele se mostrava arredio. Nunca vi Humberto com uma turma. Ele nunca vez parte de uma galera. Eu acho que minto: a galera dele era outra: ele navegava, viajava, lapidava todas as formulações mentais para entender esse mundo que imaginamos viver.
Sim, a gente imagina viver. É tudo ilusão, superstição, emulação, tentação e expiação.
Carlos era gauche. Direitinho como Drummond falava. Carlos era um errante. Um mutante. Um elegante que caminhava constantemente em terreno minado. Ele não se sentia confortável, olhando, pensando e percebendo o que esse mundo apronta. E o sinal mais evidente disso que estou dizendo, eram os seus dois espantados olhos.
Sim, através da visão, enxergamos e sentimos com mais virulência, toda a monstruosidade do que é viver.
Carlos estava sempre largado. E acelerando coisas. (Contradição?). Dando conta de espantos e desmaios. Suspirando com sua lente a necessidade de catalogar paragens.
O artista carrega consigo as dores, as cores de um mundo múltiplo e disforme. Insistente e guerreiro, o artista formula, recria, persegue, induz, fareja, promete, silencia, adormece, propaga, eterniza, levita, transcende, avisa, sustenta, reclama, beija, vigia, concentra e libera descobertas.
Sim, somos todos possuidores de energias. E de fantasias. Alergias e alegrias.
Carlos era mágico. Ele sobreviveria diariamente da forma mais junkie. Underground. Possuía o dom franciscano. Ele nunca explodia. (E sempre explodia). E penitenciava ao redor dos seus labirintos, as suas preferências obscuras.
Era humano e extremamente criativo. Era capaz de rapidamente de encontrar respostas para as cores e o alfabeto das suas inquietações vivenciais.
Amava o obscuro e a complexidade do ver. Registrava tudo. Nada passava desapercebido. Era um vigilante das horas mais estranhas e do silêncio da alma. Dialogava com deuses e diabos. Ria e chorava. Ele era noturno, mais também tinha fé na luz do dia. Sentia a pulsação da hipocrisia humana. Refazia com seu riso raro, o testemunho de uma pessoa singular. Nesse ponto Carlos e Cirilo eram irmãos. Era cumpridor de noias e traumas. Tentava compartilhar com elas, uma amizade duradoura.
Assim, com o passar do tempo, a sua arte foi tornando proporção divina. Varava noites pensando sobre o respeito humano. Sobre a cor que teimava em não se apresentar. Sobre a arte de ser cronista dos desesperos e dos miseráveis desejos mundanos.
Carlos era puro. Ele era uma criança. Brincava com despenhadeiros e com o ímpeto de se sentir outsider. Negligenciava meio termo e a difusa confusão que se estabelecia quando solicitado para compreender lições e ilações sociais.
Ele morreu louco. Insano. E rebelde.
Ele viveu as últimas horas de um mundo que ele mesmo amava. Mesmo sabendo da inteira ignorância que reina entre nós.
Carlos se foi. Aonde ele está, certamente confirmará suas contravenções. Suas revoluções. Suas inquietações.
Seu singular faro e fórum. Discípulo e profeta da esculhambação do que é viver.
Carlos Gurgel