“Olhe o Fred no jogo contra a Austrália. Ele entrou, deu um toque na bola e marcou. Assim, talvez o Ronaldo precise de um pouco de sorte também.”
Pelé
Júlio César Pimenta
Mistério da noite
Não é fácil o dia dela. É quem abre as portas e quase sempre é a última a sair do bar de Nazaré.
Pelas 9:00h da manhã, chega e já vai direto à vassoura de piaçaba. Trabalho pouco, pois que, de véspera, já deixou quase tudo limpo e arrumado. Apenas retoques finais de vestígios deixados pelos últimos fregueses da noite anterior. Um guardanapo jogado debaixo de uma mesa, uma ponta de cigarro apagada na sola do sapato do mal-educado.
Coloca mesas e cadeiras de plástico para fora, na calçada, e vai para a cozinha preparar o feijão já devidamente catado na tarde anterior e deixado de molho, na água, para amolecer.
Prepara o tempero do feijão e o põe no fogo, já temperado. Depois, águas para ferver, para o arroz e macarrão de todo dia. Retira as carnes do frízer e aí começam a chegar os clientes de ponto, para uma chamada ou duas, de cachaça.
Lá pelas 11:00h é que começam a aparecer os chegados à cerveja e os diaristas do almoço. Peixe, carneiro, porco, carne-de-sol, costela. É o cardápio de todo dia, só diferenciado no sábado, dia de fava e de expediente menor.
Morando na Zona Norte, logo Nazaré apercebeu-se de que ninguém ia importar-se com suas dificuldades de transporte, esticando saideiras noite adentro, fazendo-a correr riscos de sujeitar-se a corujões nem sempre vindos.
Até que determinou horário para fechamento: 22:00h.
A turma não deixou por menos. Logo batizou o estabelecimento de “Fecha às 10”.
Nazaré, mais preocupada com seus próprios problemas do que com as queixas dos recalcitrantes, nem era com ela. E manteve o seu horário de funcionamento, reduzido, aos sábados, para as 5:00h da tarde.
Só na terça-feira, o horário muda. Por conta de um Dia da Poesia caído numa terça-feira de Lua Cheia e muita comemoração pelas adjacências do Beco, a turma preparou uma performance poética com show final de Cida Airam para as calçadas de Nazaré e a festa não deu certo: era noite de reunião da Maçonaria, no andar de cima, e os bodes ficaram impossibilitados de qualquer discussão sobre assuntos em pauta, dada a algazarra que faziam os poetas lá embaixo.
- Dona Maria!
Nazaré já sabia. Era o “chefe deles” querendo pôr fim à festa dos poetas.
Confusão armada, ameaça de não renovar o contrato de locação do imóvel, que a eles pertence, Nazaré fica doida, sem saber o que será da vida sem os seus de todo dia.
Nada que um bom discurso, ampliado para que o mundo, inclusive o lá de cima, ouvisse e não resolvesse.
- Intolerância!
Aquilo era um ato de intolerância e tolerância é palavra-chave para todo bom maçon.
- Tá bom. Cida canta, se encerra a festa e a pendenga está resolvida.
No outro dia, a sentença: às terças, a partir das 19:00h, quando começam a chegar os maçons para a reunião semanal, bar fechadinho da silva para a tranqüilidade de todos: fuzuê etílico mantido, mas trégua às terças, após as 19:00h.
A conversa, porém, não é sobre Nazaré ou Dona Maria, para o vizinhos, mas sobre Tásia, a personagem protagonista principal desta crônica.
É que, apesar da labuta, do fogão e temperaturas quentes do ambiente, o suor a escorrer-lhe pelo corpo por muitos desejado, seios fartos e quase sempre soltos, sobre malha a torneá-los, Tásia não descuida da vaidade e procura manter-se em forma para mostrar-se aos admiradores.
O ruim da história é quando chega a hora de lavar o banheiro e tomar o banho. Ruim para os que estão nas mesas, pois, para ela, essa é a hora sagrada e sua, só sua, dane-se Nazaré, seu Milton, o cliente mais estribado, a moça donzela a trancar-se em cólicas urinárias.
Segurem todos suas necessidades, porque, no mínimo, serão 80 minutos de porta fechada. Sem ter para ninguém.
A hora preferencial é a de começo de movimentação de final de tarde, clientela chegando, mas muitos já ali, mesas cheias de cerveja e bexigas também, apertadas, à espera do surgimento da divina no salão, cheirosa como nenhuma outra, a mais cheirosa entre qualquer dondoca vinda do mais caro dos caros salões de beleza espalhados pela cidade.
Cheirosa e sorridente.
É como se fosse a senha para os mistérios da noite.
Ela fica por ali, atendendo os últimos pedidos de cozinha, mas já não é mais a mesma. Até arrisca a piaçaba meio disfarçadamente, mas sua hora chegou. Fica até o fechamento do bar, mas é outra. Completamente outra.
O que será de sua noite é o maior mistério que o estabelecimento não guarda, pois estará fechado e ela no mundo.
Eduardo Alexandre