“A 'Veja' chegou ao limite da podridão da imprensa.”
Presidente Lula, sobre denúncia de que teria conta no exterior
Hugo Macedo
Naufrágio no açude Gargalheiras
Nem havia amanhecido. Eram umas 4 horas da madrugada quando ele se levantou da mesa, pensativo. Estava só desde as 2 da madrugada, quando os companheiros, vencidos pelo sono, resolveram ir para os seus apartamentos na pousada onde estavam hospedados. Sopesou a garrafa. Ainda dava para tomar um cálice de vinho.
Estava fazendo um pouquinho de frio, coisa rara naquele mundo de pedras que rodeia o açude Gargalheiras. Coçou a barba pensativo. Levantou-se. Até o fela da mãe do garçom foi dormir!
Viu um flash do outro lado do açude e imaginou que o fotógrafo Hugo Macedo já estava começando a captar a natureza. Buscou a taça. Emborcou de uma só vez o gostoso tinto seco que estavam tomando desde começo da noite anterior. Depois, ajeitou as sandálias, acendeu um Carlton e, saindo da pousada, começou a passear pela beira do açude. No meio destas pedras dava para fazer um filme de reiar!
O dia começava a clarear. Passou por um pescador que se dirigia para sua canoa, que o cumprimentou:
- Dia...
Ele respondeu com voz embotada.
- Bom-dia...
Será que estou bêbado?
Continuou a andar. Preciso fazer alguma coisa senão vou ficar louco, esperando aquele povo acordar às 10, 11 horas da manhã. O pior é que nem tem um bar aberto...
Passando perto da margem, viu uma lancha com a chave na ignição. Conhecia aquela embarcação que pertencia ao dono da pousada. Sabe de uma coisa? Vou dar uma volta pela imensidão do Gargalheiras. Paro na casa de Hugo, do outro lado, tomo umas dez e lá pelo meio-dia volto para o almoço.
Entrou na lancha e deu partida. Nada. O motor ficava fazendo um barulhinho de quem não quer pegar. Tentou umas dez vezes, até que um outro pescador que ia passando gritou:
- Puxe o afogador, mané!
- Mané é a sua mãe, ou pai. Sei lá! Vá se reiar!
- Vai tu maracatu!
- Não lhe respondo mais! Fez um gesto obsceno com o dedo e tentou ligar novamente a lancha, dessa vez puxando o afogador conforme aquele idiota tinha ensinado. Vrummm! Pegou na hora.
Desamarrou a corda que a prendia numa estaca, esquentou o motor com algumas aceleradas e depois foi saindo devagar. Queria contornar todo o açude, ver tudo e terminar parando do outro lado, conforme os seus planos. Acelerou mais e ficou deslumbrado com o rastro branco da espuma que a potente lancha ia deixando. O único barulho no açude era o da sua embarcação.
Quase passou por cima de uma canoa, quando estava olhando para trás, desviou na hora e continuou. Passou pela bonita Pedra da Baleia. Foi até a ‘prainha’ e, quando já vinha voltando, em toda velocidade, pumba! Bateu numa pedra escondida pela água e virou.
Susto grande.
Todo molhado, cigarro apagado ainda pendente na boca. Que danado eu vou fazer agora?
Não demorou, chegou uma canoa com dois pescadores. Do outro lado, eles não viam o náufrago que estava agarrado na lancha, quase sem ver nada, com os óculos cheios de gotículas de água, que ampliavam ainda mais o sofrimento daquele momento.
Ouviu o lento barulho dos remos e a conversa dos dois, quando iam chegando:
- Tatá, essa batida pareceu coisa de cinema...
- Num foi Dudé. Foi um vôo lascado! Vou até fazer uma música falando disso. Será que tem gente viva?
- É bem capaz...
Dudé não fechou a boca, quando ouviu o grito vindo de trás da lancha:
- Eu tô vivo, aqui, do outro lado!
Contornaram a lancha virada e deram de cara com o náufrago tremendo de frio, cabelos e barba em desalinho, camiseta branca colada no corpo e duas sandálias que boiavam.
- Vige Dudé - disse Tatá -, é aquele homem que gosta de cachaça mineira e que faz filme. Vamos puxar logo ele pra canoa.
- É mesmo - concordou Dudé -, você pega pelos fundos da calça e eu puxo pelos braços, senão a canoa vira também.
O náufrago perguntou:
- Tem que ser pelos fundos da calça? Se for, cuidado para não puxar a cueca que eu sou muito cabeludo.
- Ora, você tá reiado aí e ainda faz exigências... Disse Dudé, já fechando a cara.
Depois que o náufrago se acomodou na canoa, já refeito do susto e do porre da noite toda, foi logo perguntando:
- Vai abrir o bar hoje?
- Hoje não - disse Dudé -, já trabalhei muito pescando gente...
Tatá remava na frente, o náufrago ficava no meio tremendo de frio e Dudé remava na traseira. No meio do caminho, Tatá começa a puxar conversa:
- Num é o senhor que faz cinema?
- É...
- Já fez algum filme com uma virada danada daquela?
- Não...
- Eu nunca mais vou esquecer do que o senhor fez. Pense numa coisa espritada!
Náufrago já estava brabo com a conversa. Não agüentava mais ter que dar explicações a Tatá, que continuou.
- Mas que o senhor parece um artista, parece! Vige Maria, quando a lancha bateu na pedra, o seu vôo parecia daquele homem de apelido Zero Zero Sete. Pense num vôo bonito! Se o senhor tirasse a barba, já que não faz filme, podia ser até ator...
Quando ele chegou à pousada, todos o esperavam aflitos na entrada. A notícia do acidente já havia se espalhado.
Seu estado era lastimável. Havia perdido as sandálias e a camiseta branca estava toda suja do lodo da canoa salvadora. Assim que foi entrando, todos falavam de uma só vez querendo saber o que tinha acontecido. Ele não dizia nada, até que levantando os braços gritou:
- Eu não faço mais filmes! Tragam um barbeador pelo amor de Deus. Eu agora sou ator!
Léo Sodré
Ficção ou realidade?
Leitores, amigos e curiosos de plantão (onde estão incluídas pessoas das duas primeiras categorias) que leram os dois textos meus já publicados na brava Papangu, “Encantamento” e “Despedida de solteira”, perguntaram a este escrevinhador se as referidas histórias eram “ficção” ou “realidade”.
A cada pergunta, eu hesitava. De início, respondia categoricamente que cada linha impressa era pura ficção, tudo saído da minha cabeça, tal qual os hobbits de Tolkien. Mas depois, sozinho, eu matutava: será que tudo foi ficção? Uma vez que as histórias nasceram dentro de mim e ganharam a luz do mundo, não se tornaram de certa forma uma realidade em si?
Levei o raciocínio ainda mais longe. Uma vez que a ficção pode ser uma realidade, quem garante que a chamada “vida real” não é pura ficção. Quem me garante que não vivemos todos em uma realidade como a do filme Matrix? Quem me assegura que meu emprego, minha casa, meu cotidiano, serão mesmo reais? Toda a minha vida pode ser o sonho de alguém (Deus? Shiva? Fellini? Algum escritor?) ou uma realidade artificial como a de Jim Carey no filme “O show de Truman”. E se como a menina em “O mundo de Sofia” eu não passar de uma personagem? Então não cabe mais o questionamento se o que eu escrevo é realidade ou não, já que eu mesmo e tudo que me cerca pode não ter um pingo de realidade. Nada é real, portanto.
Pensando nisso tudo decidi chamar meu velho amigo advogado João Marcelo Dantas para tomarmos uma cerveja. Cogitei também chamar o velho e folclórico Lúcio Albuquerque, o “Ratazana”. Mas, espere aí, Lúcio é apenas o personagem de um livro que estou escrevendo, “A República do Ódio” (Merda! Não deveria ter revelado isso! Dá azar dizer aos leitores o nome do livro que se está escrevendo. Mas, se pode ser tudo uma irrealidade, quem garante que alguém está lendo este texto? Por falar nisso, a revista Papangu realmente existe ou não passa de minha imaginação? Já bolei tantos nomes de revistas imaginárias...)
Mas, voltemos a Lúcio Ratazana, playboy, bebedor e piadista que vive às custas do dinheiro do pai, funcionário aposentado da Petrobrás e cursa desleixadamente publicidade na UnP. Um cara excelente, mas...fictício. Eu não poderia telefonar para ele. Lembrei então de outro velho amigo, Henderson Dantas, conhecido como “Peixe”. – Vou ligar para ele... – pensei. Mas, hesitei. E se Henderson também não passar de uma figura da minha imaginação? Estaria eu enlouquecendo? Mas, pensava eu, se Ratazana é um personagem meu, assim como Sissi, George Magalhães, Vanessa, Amorim... quem me garantia que Henderson é real? E quanto as outras pessoas do meu pequeno universo, eram reais? Quem me garantia que Geane, Leila, Paulo César, Davi, Pinto Junior são reais – alguns deles sequer parecem reais - e D´artagnan, Capitu, Riobaldo, Dom Quixote, não? Afinal, a realidade não é aquilo que temos à mão e que faz parte de nossa vida e de nosso dia-a-dia? Os três mosqueteiros sempre fizeram mais parte da minha realidade do que, por exemplo, uma simpática velhinha da Bielo-Rússia. Ainda que real, essa hipotética senhora, chama-la-emos de Natasha Ivanova, é mais ficcional para mim do que Capitu, com seu olhar oblíquo e dissimulado ou de Sissi, a auto-destrutiva e bela jovem que protagonizou meu romance “Ponto de Fuga”.
Enfim, é complicado distinguir ficção de realidade... Quando lancei em 2000 “Ponto de fuga”, que trata da história de um empilhador de caixas de supermercado brucutu que mata com três tiros a citada Sissi e cumpre uns dez anos de cadeia, me perguntaram se a história era auto-biográfica. Talvez. Quem sabe, eu já tenha matado alguém e sido preso e não me lembro, como nos filmes em que o protagonista perde a memória. Talvez eu precise procurar um analista, quem sabe a dra. Flaviana Bertoldo, magra, bela e depressiva, dona de imensos olhos verdes, que queria ser veterinária mas terminou se tornando uma das mais prestigiadas psicólogas de Natal. Oh, não, espere aí...ela não passa de mais uma personagem do ainda inconcluso “A República do Ódio”... Talvez eu precise de um analista de verdade. Ou beber uma cerveja no Beco da Lama com Dunga, Léo Sodré (se ainda não tiver se mudado de mala e cuia para o país de Mossoró) e Lívio. Isso se eles forem reais. Beco da Lama... sei não, parece cenário de romance de Jorge Amado ou Aluísio Azevedo. Será que o beco da Lama é real ou fictício?
Cefas Carvalho
Alex Gurgel
Registro
(Texto lido ontem, durante a cerimônia de posse da nova diretoria da Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências)
Como havia um Beco no meio do caminho, fiz dele o beco que passou em minha vida.
Do beco, por ser viço, fez-se vício que, como droga, contagia e arregimenta, multiplica-se.
Como na sarjeta do vício havia um corpo, no beco, o bolero entoado em desafino juntou-se a um violão que juntou-se a uma caixa de fósforos, que se fez percussão. Alimento.
Do bolero nasceu a banda e da banda fez-se espetáculo.
E vieram festas e vieram vozes e veio o coro no meio da noite em serenata.
A menina, linda menina, fez-se encantada praieira ao som da flauta, que fez-se harmônica, que fez-se sinfônica, que um dia chegará ao Beco que desnuda-se em todas as madrugadas.
No meio da cidade, da minha cidade, havia um beco. Um beco tão grande que tinha nome de rua e era pai de todos os becos. Não os da cidade, mas pai de todos os becos do mundo, abençoado Beco.
Sua cidade decerto tem um beco como a minha. Um beco da lama como o meu.
Se não tiver, deve ser triste a sua cidade.
E deve ser triste porque na sarjeta do vício feito beco não haverá um bêbado cantando a volta do boêmio. Volta ao beco, ao álcool, ao vício maior que é o próprio beco.
Não por ser o Beco pelo Beco, mas pelo que ele guarda em suas canções tristes ou baladas alegres, beco que se desfaz em sorrisos e tem pernas de apaixonada amante, sempre aberta a amar por amar. Como vício.
Vício de ser e querer ser sempre beco. Ou beco ser enquanto ente: vivo, pulsante, feito ribombares de zés-pereiras em sábados de carnaval.
Nesse Beco, rio de minha vida, por sorte ou ventura, havia um tamborete e havia uma mesa que pedia uma cerveja que pedia companhia.
Da companhia, o beco fez-se confraria e a confraria tomou a cidade por não se bastar a si mesma.
E foram tantos os becos, tantos os bêbados trôpegos que não se pode mais: de beco da cidade, a cidade tornou-se beco de seu próprio beco, pois dele encantou-se para poder ser, com nome, identidade e todas as digitais guardadas - registro de antigamente em cartórios de saudade: poesia.
Eduardo Alexandre