Sentiria se ele tivesse partido ou se ausentado. Se tivesse ido para sempre.
A eternidade o abraçaria e eu o perderia para Deus, se Deus houvesse, “meu parceiro”, como ele chamava a essa figura implacável, a quem ele tratava sem nenhuma cerimônia.
O abismo é a falta que eu não sinto de meu pai. A falta que ele faria se tivesse partido, viajado, se ausentado.
Eu o visitava na prisão e, aí, a falta era calada, envergonhada. Minha mãe, acuada, dizia: “Se chorar, não vai”. E eu ficava concentrada em não chorar.
Depois, ele viajou, fugindo de prometidas prisões. Dessa vez, a falta fez escrita: eu lhe entreguei um bilhete que ele carregou por quase 40 anos. Guardou até que o papel se desfizesse. Depois, o substituiu por um retrato. Eu, já mulher feita, e ele andando com meu retrato na carteira.
Tínhamos um amor, uma espécie de amor, desses tantos que andam por aí.
Voltou ao quarto com as mãos amarradas porque tinha se insurgido no CTI contra o que chamou de “cárcere privado”.
Nem nocauteado pela anestesia aceitava restrições ao que chamava seu “direito constitucional de ir e vir”.
Era assim, o meu pai. Tiveram que amarrar o homem, justificava o enfermeiro. “Ele arrancava tudo”, ficava repetindo. Boi brabo, podia virar meu pai.
É assim, o meu pai: inteiramente sedutor... Comprava vinho com uma jovem que o encantava. Tomava a bebida no copo certo, cheio de delicadezas... Até os mendigos perguntavam por ele e gritavam do fundo de suas locas: “estou rezando por ele”. “Como vai Seu Moacyr?”
Como se pode ver, para mim, meu pai é de domínio privado. Sua vida pública, vida de homem público, sua ação política, sua prática de educador e escritor, deixo ao público.
Meu pai, para mim, é uma intimidade não compartilhável.
Como se eu pudesse tirá-lo dali, daquele mar de agulhas, tomá-lo pela mão e, simplesmente, sair.
De outra feita, já em casa, entrei no quarto e a enfermeira procurava uma veia, uma última veia... Ele me viu, abriu os braços como um Cristo, e disse: “Minha filha, eu não posso mais”. Era assim, o nosso amor: cheio de impossíveis.
Na ambulância, me agarrei com ele quando vi o olhar assustado pelas curvas que o motorista fazia. Agarrei-me àquele corpo que partia, este sim, a olhos vistos. Em um dos últimos dias, cheguei e ele estava só. Não tinha posição possível, nem de pé, nem deitado, nem sentado.
Ficamos, os dois, na diagonal. Sua cabeça encostada na minha, enquanto eu agüentei.
Depois, caí no choro.
Ele me olhou muito sério e disse: “não se preocupe”. Não fique assim, não”.
Eu lhe respondi: “mas, pai, eu sou chorona”.
Ele ficou mais sério ainda e repetiu; “Não se preocupe”.
Eu lhe obedeço.
Depois disso, perdeu-se em mim: entrou-me pelos olhos, narinas, tato e memória. Estou impregnada de meu pai.
Sua falta seria um abismo intransponível: buraco sem beira.
“Minha filha, você pulou um abismo.”
É, pai: Eu não sinto a sua falta.