sexta-feira, agosto 07, 2009

BURACO SEM BEIRA


A Falta de meu pai
Clara de Goes


Não sinto falta de meu pai.

Sentiria se ele tivesse partido ou se ausentado. Se tivesse ido para sempre.

A eternidade o abraçaria e eu o perderia para Deus, se Deus houvesse, “meu parceiro”, como ele chamava a essa figura implacável, a quem ele tratava sem nenhuma cerimônia.
Não sinto falta de meu pai e, certamente, sentiria se ele não estivesse mais comigo. Eu o teria perdido para Deus, se Deus houvesse, pois ele era um amor antigo de meu pai, criado na infância, desses amores que a gente carrega inventando pela vida afora.
Então, eu não sinto falta de meu pai e o escuto dizer: “minha filha, você pulou um abismo”. Ou, “minha filha, você tem a vocação do abismo”.

O abismo é a falta que eu não sinto de meu pai. A falta que ele faria se tivesse partido, viajado, se ausentado.
(Como é que eu posso sentir falta dele se, no fulgor do meio-dia, ele me sopra a brisa da tarde de Natal, quando o vento vira, quando seu olhar semeia verdes à minha volta e repousa sobre mim. E, de noite, me toca o ombro com um arrepio de frio; e eu durmo, e sei que é ele, e acordo e é ele, e penso nele e, cartesianamente, me certifico da existência viva dele).
Meu pai.
Meu pai se foi várias vezes e aí eu senti sua falta. Uma vez, propriamente, não foi, levaram.

Eu o visitava na prisão e, aí, a falta era calada, envergonhada. Minha mãe, acuada, dizia: “Se chorar, não vai”. E eu ficava concentrada em não chorar.

Depois, ele viajou, fugindo de prometidas prisões. Dessa vez, a falta fez escrita: eu lhe entreguei um bilhete que ele carregou por quase 40 anos. Guardou até que o papel se desfizesse. Depois, o substituiu por um retrato. Eu, já mulher feita, e ele andando com meu retrato na carteira.

Tínhamos um amor, uma espécie de amor, desses tantos que andam por aí.
Recentemente, meu pai foi hospitalizado. Fez uma cirurgia para retirar um câncer e a bexiga foi junto.

Voltou ao quarto com as mãos amarradas porque tinha se insurgido no CTI contra o que chamou de “cárcere privado”.

Nem nocauteado pela anestesia aceitava restrições ao que chamava seu “direito constitucional de ir e vir”.

Era assim, o meu pai. Tiveram que amarrar o homem, justificava o enfermeiro. “Ele arrancava tudo”, ficava repetindo. Boi brabo, podia virar meu pai.

Chegou desacordado e ficou na penumbra. Eu olhei para ele e meu olhar se demorou. Percebia que meu amor por ele era absolutamente incondicional. Eu pensei: ele pode fazer qualquer coisa, da mais condenável à mais louvável, que eu vou amá-lo do mesmo jeito. Meu amor por ele é incondicional.

Depois, ele saiu do hospital mas não da doença.

Foram quase 3 anos... eu pude mimá-lo, levar empadinhas para ele, queijo do reino, pastéis; chamar para sair, ir ao teatro... e ele, já muito fraco, dizia: “eu vou, porque é você”.

É assim, o meu pai: inteiramente sedutor... Comprava vinho com uma jovem que o encantava. Tomava a bebida no copo certo, cheio de delicadezas... Até os mendigos perguntavam por ele e gritavam do fundo de suas locas: “estou rezando por ele”. “Como vai Seu Moacyr?”
Meu pai.

Como se pode ver, para mim, meu pai é de domínio privado. Sua vida pública, vida de homem público, sua ação política, sua prática de educador e escritor, deixo ao público.

Meu pai, para mim, é uma intimidade não compartilhável.
Na última internação, já entre o delírio e a realidade (que ele tanto prezava), dizia: “Vamos embora. Chama Clara.”

Como se eu pudesse tirá-lo dali, daquele mar de agulhas, tomá-lo pela mão e, simplesmente, sair.

De outra feita, já em casa, entrei no quarto e a enfermeira procurava uma veia, uma última veia... Ele me viu, abriu os braços como um Cristo, e disse: “Minha filha, eu não posso mais”. Era assim, o nosso amor: cheio de impossíveis.

Na ambulância, me agarrei com ele quando vi o olhar assustado pelas curvas que o motorista fazia. Agarrei-me àquele corpo que partia, este sim, a olhos vistos. Em um dos últimos dias, cheguei e ele estava só. Não tinha posição possível, nem de pé, nem deitado, nem sentado.

Ficamos, os dois, na diagonal. Sua cabeça encostada na minha, enquanto eu agüentei.

Depois, caí no choro.

Ele me olhou muito sério e disse: “não se preocupe”. Não fique assim, não”.

Eu lhe respondi: “mas, pai, eu sou chorona”.

Ele ficou mais sério ainda e repetiu; “Não se preocupe”.
Eu lhe obedeço.

Depois disso, perdeu-se em mim: entrou-me pelos olhos, narinas, tato e memória. Estou impregnada de meu pai.

Sua falta seria um abismo intransponível: buraco sem beira.

“Minha filha, você pulou um abismo.”

É, pai: Eu não sinto a sua falta.

por Alma do Beco | 8:13 AM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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